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Introdução

Para os europeus, a lepra “encaixava-se” na representação

de doença tropical [1], reconhecida como a doença do

“outro”. As descobertas marítimas, o comércio, as guer-

ras, a escravatura e a emigração, contribuíram em muito

para a sua difusão. A doença do espaço colonial ameaçava

tornar-se doença do espaço metropolitano. O trânsito de

pessoas, medeava o trânsito de novas ameaças – a amea-

ça

da doença. A lepra foi disseminada pelo "continente

negro" através das diferentes comunicações estabelecidas

entre os diferentes povos.

Em 1901 o colonialista Eduardo Costa lamentava "(...)

não [haver] em qualquer das nossas colónias um hospi-

tal de leprosos... ora a lepra, a elephantiasis, corroe e

gangrena grande número de raças negras." [2] O go-

vernador da colónia, Carvalho Viegas, salientava que a

lepra era o principal problema de saúde na Guiné a se-

guir às Boubas e ao Paludismo, registando-se em 1944,

340 casos de lepra e um acréscimo, entre 1942 e 1944,

de aproximadamente 50%, num universo de 350.000

habitantes [3].

Também a metrópole se debatia com o flagelo da lepra.

Só em setembro de 1947, foi materializado o combate da

doença, aquando da inauguração da Leprosaria de Rovis-

co Pais, ambicioso projeto higienista do Estado-Novo. À

semelhança do que acontecia na metrópole, tentou-se de-

belar a lepra nas colónias, instituindo as medidas julgadas

necessárias para uma boa profilaxia e combate da doen-

ça. Na base das campanhas, estavam os meios adotados na

metrópole, bem como:

(...) outras disposições condicionadas por uma menta-

lidade diferente por parte dos habitantes, pertencentes

às raças mais diversas, com os seus costumes, as suas

crenças, os seus fetiches e tabus, alguns deles ainda ar-

reigados às práticas fetichistas, condicionando todos os

atos importantes da sua vida pela consulta do feiticeiro

da tribo, e estando além disso, uma grande parte, afas-

tados da civilização e vivendo duma maneira primitiva

[4].

A estratégia de terapêutica e profilaxia no espaço colo-

nial, utiliza como referência a estratégia biopolítica de

medicina social da metrópole. Todas as atividades foram

orientadas pela Direção dos Serviços de Saúde do Minis-

tério do Ultramar e chefiadas por médicos com prepara-

ção no Hospital Rovisco Pais e no Instituto de Medicina

Tropical de Lisboa [5]. A profilaxia anti-lepra assentava

essencialmente na inscrição dos doentes, no diagnóstico

precoce, no isolamento dos contagiosos e no seu trata-

mento. Os elementos profiláticos preconizados eram a

leprosaria, o dispensário com as brigadas móveis e o pre-

ventório [4].

Da aldeia de leprosos

ao Hospital do Mal de Hansen

A lepra representava um problema social e económico na

vida da colónia, na medida em que deformava, debilitava e

incapacitava o corpo do “outro”. Uma tese apresentada no

Congresso Comemorativo do V Centenário do Descobri-

mento da Guiné (CCVCDG) Carlos Barral Moniz Tavares,

salienta o valor da mão-de-obra indígena como um valor a

conservar:

As colónias não podem prescindir da mão-de-obra indí-

gena. Para que dela se possa usufruir o maior proveito

é necessário que as populações indígenas possuam boa

capacidade para o trabalho e, portanto, se lhe propor-

cionem boas condições de higiene individual e geral.

(...) A Guiné é uma colónia essencialmente de natureza

agrícola, e, como tal, necessita de uma população nativa

numerosa, pois é nela que se recrutará a indispensável

mão-de-obra. Para que haja uma população indígena su-

ficiente tem de se procurar atingir dois fins primordiais:

diminuir a mortalidade e aumentar a natalidade [6].

Em proporção, a Guiné era a colónia com maior núme-

ro de casos de lepra, "o que podia acarretar uma quebra

da vitalidade do povo, conduzindo a uma incapacidade dos

indígenas com perda da sua função social e da sua capaci-

dade de trabalho, resultando daí prejuízo para eles e para

a Nação [7]. Está bem patente o pendor biopolítico da au-

toridade colonial no controlo das pestilências, epidemias,

dos agentes infeciosos e da população. As possibilidades

de se conhecer a doença, as condições da sua etiologia e

desenvolvimento, tal como as condições propícias à sua

evolução, surgem na medida da “

economia

” do corpo [8].

Importava prestar, “aos indígenas uma assistência médica

cuidadosa e continuada, tratando-os convenientemente

quando doentes, isolando-os quando se trate de doença in-

fecto contagiosa, proporcionando-lhes os meios de melho-

rar e robustecer a raça" [9] .

Em inícios da década de 1950, chegavam à metrópole in-

formações de médicos a trabalhar na Guiné, que apontavam

no sentido da lepra tender a "... aumentar entre as popula-

ções nativas com graves riscos para o futuro" [10]. Este facto,

conduziu o Ministro do Ultramar a emitir um despacho para

organização de uma Missão que tinha por objetivo avaliar a

extensão da endemia, estudar os focos de lepra existentes e

a sua distribuição, bem como estabelecer as bases para o seu

combate. Salazar Leite, professor do Instituto de Medicina

Tropical, chefiou a Missão de Combate à Lepra na província

portuguesa da Guiné [11] observando num vasto inquérito

de amostragem, 94.389 “indígenas”, cerca de 20% da popu-

lação dita “não-civilizada”, considerou a incidência da doença

como alarmante, ao apurar a taxa de 25,73% [11]. Comen-

tava então, o Prof. Salazar Leite, em 1952:

Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical