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Em Bissau poucas pessoas

compravam vinho ou alimen-

tos que fossem levados da

zona de Cumura com medo

do contágio, com medo que

os alimentos tivessem sido

preparados por algum doente

e dessa forma transmitisse a

doença (E.6). Graças ao avan-

ço da terapêutica (dapsona

depois a poliquimioterapia),

a lepra tornou-se, das doenças

infecciosas, a menos conta-

giosa e perfeitamente tratá-

vel. Retiraram-lhe ao mesmo

tempo grande parte da carga

estigmatizante o que garantiu a mudança de atitudes em

relação aos doentes. Um ponto de viragem no modo de

olhar e entender o lugar

de Cumura foi o conflito iniciado

em junho 1998. Nesse tempo Bissau estava sob fogo cerrado,

entre as forças de Nino Vieira e de Ansumané Mané, sendo

a população obrigada a fugir em todas as direções, encon-

trando refúgio nas tabancas do interior ou, mais próximo de

Bissau, nas missões católicas que abriram as suas portas. Foi

o caso da missão e hospital de Cumura [20].

A Cumura chegam doentes encaminhados por curandeiros

tradicionais, fruto do reconhecimento e investimento, do

programa de combate da lepra junto deles. Procura-se en-

volver os curandeiros na vigilância e despistagem da doença,

em especial nas regiões com maior incidência da doença.

Outros doentes chegam ao Hospital do Mal de Hansen, por

orientação de antigos doentes aí internados (E.6).

Cumura emerge como ponto de confluência de múltiplas

biografias na diversidade do

puzzle

social e cultural da Gui-

né-Bissau e países vizinhos. É um espaço aberto aos diversos

grupos etno-linguisticos, como os felupes, fulas, mandin-

gas, balantas, mancanhas, beafadas, pepéis, manjacos entre

outros. Olhando os doentes, vislumbram-se amarrados ao

pescoço ou à cintura, amuletos protetores da sua religião

e decerto que alguns, entre uma toma e outra do antibió-

tico, fazem uma cerimónia tradicional perto do hospital

ou tomam o mézinho que algum curandeiro da sua tabanca

mandou, para ajudar a potenciar o efeito da poliquimiote-

rapia. Os doentes internados, mais velhos, com notórias e

graves deformações, são doentes do tempo colonial, quando

a medicação não era tão eficaz quanto a poliquimioterapia

de hoje. Hoje, o internamento em Cumura é pelas lesões

resultantes da lepra.

Muitos partiram há muito das tabancas de origem fixando-

-se, depois da alta, nas proximidades do hospital. Pessoas

que a doença fez alterar a própria identidade levando-os a

recusar o retorno a casa, à sua comunidade.Aqui estão perto

dos cuidados, da vigilância e proteção hospitalar e da missão.

Para muitos foi a forma de fugir ao abandono e exclusão que

seriam alvo se regressassem a

casa com as deformidades e

limitações. Moram na tabanca

de Cumura

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e “todos os dias

de manhã, o mercado é ani-

mado com muitos vendedo-

res que são ex-leprosos e que

aí vivem. Alguns fazem uma

banca e vendem as suas mer-

cadorias porque não têm pos-

sibilidade de ir para trabalhar

na bolanha, plantando ou co-

lhendo o arroz” (E.6). Hoje,

o amplo espaço onde outrora

dominava a lepra, está ocupa-

do pelas “novas lepras”, a SIDA

e a tuberculose. Dum tempo colonial com uma doença a

confinar, vive-se hoje num tempo global, com outras várias

a combater e controlar. Perguntamos no local: lepra ou mal

de Hansen? Qual o nome mais “justo”?

Hansen. Não vale a pena ir mais longe. Dizer a palavra

lepra, bate no coração, é um choque. Lepra é um nome que

toda a gente conhece e que toda a gente tem medo. Dizer

frontalmente ‘você tem lepra’, é uma dor, é um terror, é

uma ferida que se abre... mesmo sem responder, a pessoa

sente-se muito mal. Ouvir dizer Hansen, é um nome mais

leve (E.4).

Outros vivem na aldeia dos ex-doentes que, de certo modo,

representa um lugar mais “desenvolvido” e é um sítio melhor

para viver que as tabancas, ou mesmo Bissau.Tem eletricidade,

apoio médico, água potável, alimentos.

Aqui vivem doentes com deformidades bem visíveis que cada

um tenta contornar só ou com o auxílio do vizinho, mais ca-

paz. No microcosmos da aldeia, está patente um sentimento

de entreajuda e complementaridade na deformidade. Há uma

descontinuidade nas deformações. Quem não pode caminhar,

orienta quem não vê. Quem não vê empurra a cadeira de ro-

das de quem vê e orienta. Quem não anda pode cozinhar para

quem não tem mãos. Podemos dizer que a aldeia é o espaço no

qual cada corpo encaixa numa normalidade. Este é o espaço da

normalidade, do regular, da constância na deformidade.Aqui, o

normal é estar disforme, limitado, incapacitado, dando expres-

são que “a anomalia e a mutação não são em si mesmas patoló-

gicas. Elas exprimem outras formas de vida possíveis” [33].

A aldeia vive com o apoio do hospital e da missão católica, “o

óleo, o arroz, o sabão, calçado e vestuário (...) A missão apoia

a aldeia e mais de cem ex-doentes que vivem integrados na ta-

banca de Cumura” (E.3). A lepra é o facto que une todas estas

pessoas. Quando têm os seus desentendimentos, recordam que

não podem escapar uns aos outros. Enquanto há vida, tentam

torná-la tão boa quanto podem, é o propósito de cada um nes-

te universo. Estar confinado na aldeia, representa para muitos

Fig. 6:

Pormenor da entrada do Hospital, em Cumura (foto do autor, 2010)

Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical