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meninas pra ajudar a trocar a fralda dos bebês (...) a gente
aprendeu a cuidar uma da outra (...) saía de lá casada, às
vezes com próprio aluno de lá. Dava pra rir e chorar, que
era muito triste, dava muita pulga, eu via aquele mundo de
gente grande tudo catando pulga no coberto e uma caixinha
de fósforo do lado.O castigo era esse, se você não catasse, não
mostrasse a quantidade de pulga que você catou do coberto,
você ficava sem comer
(M. C, 2013).
O trabalho como atividade obrigatória para os internos, sem
dúvida, foi um dos aspetos mais marcantes na fala dos entre-
vistados.A maior parte dos depoimentos reforça o caráter de
educação moral que se preconizava para as crianças, distin-
guindo os papéis sociais entre meninos e meninas. Revelam
ainda o peso das atividades extenuantes as quais estas crian-
ças eram submetidas e as consequências caso não as cumpris-
sem. Trabalho se confundia com educação no interior dos
preventórios.
(...) Com 5 anos tomava conta de 60 crianças. Era um dor-
mitório grande. Eu tinha que arruma as camas, encera, não
tinha enceradeira. Eu pegava um pedaço de coberto botava
os menores e dava o brilho. Porque ali se a gente não fizes-
se, a gente ia pro quarto escuro. Eu apanhei muito (...) de
meus dentes ficar mole e te que arranca em sangue frio. (...)
Fiquei no educandário até os dezesseis anos e depois fui pra
casa dos outros né. Casa de família trabalhar sendo escravo
(M.O, 2013).
Eu aprendi a lê e a escreve lá. Eu me lembro que tinha umas
moças que bordava,acho que eles vendiam (...) Era obrigado
a fazer isso.Tinha idade
certa (...) Os meninos trabalhavam
na roça. Eu cuidava dos bebês. Eu acredito que até uns 12,
13 anos mais tarde, essa idade
(M. C, 2013).
Além disso, com o tratamento padronizado nos espaços
preventoriais, desconsiderando as diferenças humanas, as
crianças sentiam dificuldades em reconhecer sua identidade
e subjetividade. Suas divergências eram aplainadas, regula-
das, pois originavam os conflitos que deveriam ser evitados.
Grosso modo, as crianças eram tidas como um somatório
de corpos que precisava ser cuidado, controlado e alimenta-
do. Em alguns casos, a própria identificação civil era alterada
pelo ex-interno ou pela nova família que o recebia: “tempos
depois também fui internado, e mudei de nome depois do
internamento”
(A. L, 2013).
A questão da adoção realizada sem procedimento legal é
emblemática de como o Estado agia em relação às crianças
consideradas abandonadas, tanto pela ilegalidade quanto pela
separação irrevogável entre pais e filhos. Durante a pesqui-
sa de dissertação “Órfãos da Saúde Pública: violação dos di-
reitos de uma geração atingida pela política de controlo da
hanseníase no Brasil”, foi possível localizar documentos con-
fecionados pelo Departamento de Profilaxia da Lepra, cujo
teor determinava a saída de crianças de preventórios para
serem levadas para o convívio de outras pessoas. O depoi-
mento a seguir além de abordar uma escusa negociação para
a entrega de crianças, reforça as diversas formas de violação
de direitos e o aspeto do trabalho humilhante e degradante
visando à sobrevivência.
A pessoa quem me levou (...) um engenheiro casado com
uma mulher (...) começou a me negar as coisas pra mim. Eu
não podia comer as comidas que eles comia. Aí foi quando
um dia eu fugi (...) eu voltei.Voltei com eles de carro pro
educandário e quem ficou comigo acho que fez a negociação
de me dá pra eles, foi uma própria funcionária, acho que era
a diretora do colégio (...) marido dela sempre queria me fa-
zer maldade. (...) era escrava, eu trabalhava e não ganhava
nada deles. Aí eu me lembro que (...) tava lavando a roupa
da filha deles, ele veio nu e me agarrou por trás (...) passou
uns 3/4 dias aí ele fez de novo (...) um dia eu decidi, falei:
‘não vou ficar mais aqui’. Fui pra rua, falei:‘vou virar garo-
ta de rua’. Andei, andei, andei, eu batia de porta em porta
perguntando se tinha alguém que podia me arrumar uma
casa pra eu trabalhar, comer, dormi, não precisava a pessoa
me pagar desde que me dava comida e dormida.(...) conheci
uma menina (...) falou assim ‘ó minha mãe tem um monte
de gente lá em casa, minha mãe fornece comida pros mo-
toristas de ônibus, caminhão e minha mãe quem sabe pode
querer uma pessoa que possa ajudar’. Aí eu fui morar com
eles (...) eu fui trabalhar lá
(M. C, 2013).
Sobre estes espaços, há ainda relatos do desaparecimento
de crianças. Os depoentes afirmam não saber se teriam sido
entregues a outra pessoa para que pudessem criá-las ou se
teriam falecido. Aliás, o mistério sobre a morte de crianças
nos preventórios é um assunto recorrente na fala dos de-
poentes, que alegam desconhecer a razão dos óbitos e o local
de sepultamento dos corpos. Tal facto gerava angústia, em
especial, quando se tratava de irmãos.
Contudo, tendo em vista o convívio frequente e o vínculo
afetivo e de dependência que as crianças acabaram criando
entre si, a dor também era representativa quando ocorria
os casos de saída, transferência ou óbito de qualquer outro
interno. Alguns entrevistados falam da tristeza que sentiram
ao receber a notícia de que sairiam do preventório, já que
estavam acostumados a conviver com as outras crianças. O
facto de um dos pais irem buscá-los poderia gerar resistên-
cia e estranhamento por não reconhecê-los. “Fiz amigos que
conservo a amizade até hoje. A gente se considera irmãos”
(E.A, 2013).
A idade limite no Regime Interno para a permanência nos
preventórios era de 18 anos para os meninos e 21 para as
meninas. Segundo a direção preventorial, ao atingir esta ida-
de, os internos estariam preparados para viver em sociedade
com uma formação profissional. Porém, vimos que estas não
eram as condições dadas às crianças nos preventórios. A Fe-
deração das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa
Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical