Table of Contents Table of Contents
Previous Page  82 / 210 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 82 / 210 Next Page
Page Background

82

Introdução

No contexto do século XX, a assistência à infância no Brasil

esteve fortemente marcada pelo caráter das instituições to-

tais

1

[1]. Até a década de 1920, a atenção à criança pobre e

abandonada era pautada em dimensões catequizadora, filan-

trópica e assistencialista. A baixa escolaridade, a pobreza e

o abandono atribuíam à criança um perfil ameaçador para a

sociedade, uma vez que se acreditava que estaria mais susce-

tível à criminalidade [2, 3].

Dessa forma, quando a criança encontrava-se em situação de

abandono cabia ao poder público atuar como um substitutivo

à família, oferecendo atendimento e proteção à infância. Para

tanto, foi instituído um complexo aparato médico, jurídico e

assistencial, encarregado de educar, reprimir e prevenir que

estas crianças não se tornassem delinquentes. O sucesso des-

ta empreiteira exigiu, sobretudo, organizar um sistema de

higiene pública, pautado pelo controlo, disciplinarização e

esquadrinhamento do espaço urbano. Foi necessário, portan-

to, agir sobre o universo da pobreza, saneando e eliminando,

principalmente os focos de doenças [3].

A convicção de que o Brasil precisava se libertar de seus

agravos sociais justificava as investidas para a segregação e

o afastamento familiar destas crianças, ao considerar que se

impediria o contágio das degenerescências para o restante

saudável da população e se evitaria a procriação e reprodu-

ção das patologias já existentes [4].

Esta proposta teria uma dupla conotação, pois ao mesmo

tempo em que o Estado atribuía à família a responsabilidade

pela saúde de seus membros, reforçando práticas educativas

de higiene, ele também se via no dever de suplantar o poder

familiar quando necessário e afastar a criança do ambiente

da família [4].

Diante do exposto, a eugenia, a preocupação com a for-

mação de um novo homem e o destaque dado à infância,

conformaram um conjunto de indicadores ideológicos que,

articulados entre si, modelaram sob alguns aspetos, a política

social nesse período.A política de saúde voltada para a crian-

ça assumiu um caráter bastante autoritário e intervencionis-

ta, já que o seu desenvolvimento físico e intelectual precisava

ser assegurado, tendo em vista os interesses da nação a longo

prazo. Justificava-se, assim, um conjunto de medidas visando

o controlo minucioso da criança, cuja ênfase recaía sobre as

atividades de educação e saúde [5].

Neste cenário político e ideológico, também foram delinea-

dos os modelos de assistência para os filhos sadios de porta-

dores de algumas moléstias, dentre elas a lepra

2

. A criação

dos preventórios brasileiros para os filhos de pessoas aco-

metidas pela hanseníase, na década de 1920, portanto, deve

ser interpretada como expressão de um contexto em que a

preocupação com a infância pobre, enquanto problema so-

cial, figura no discurso da elite brasileira. A inquietação so-

bre o tema envolvia um ardoroso debate sobre os rumos do

país com um povo miscigenado, de raça indefinida.

Diante desta realidade, a criança passa a figurar como objeto

de interesse do Estado, que propõe medidas sociais capazes

de transformá-los em cidadãos úteis para o desenvolvimento

da nação.A criança começa a ser percebida como um valioso

património, a chave para o futuro e, por estar em processo

de crescimento, um ser plenamente moldável.

A partir da década de 1930, o governo federal intensificou

suas ações de controlo e assistência às crianças pobres, aban-

donadas e aos delinquentes. O Estado utilizou-se de princí-

pios eugénicos no tratamento destas crianças, identificando,

classificando e internando os filhos dos tuberculosos, sifilí-

ticos e epiléticos. Os filhos saudáveis de pessoas acometidas

pela lepra, que ficavam desamparados após o isolamento dos

pais, passaram a enquadrar-se na categoria de crianças aban-

donadas e desvalidas [7].

Diante deste panorama, a pesquisa intitulada “Órfãos da Saú-

de Pública: violação dos direitos de uma geração atingida

pela política de controlo da hanseníase no Brasil”, investigou

a história dos filhos sadios separados dos pais doentes de le-

pra, que foram isolados compulsoriamente em colónias por

determinação do Estado.A referida pesquisa foi a dissertação

apresentada por esta autora, como requisito parcial para ob-

tenção do título de Mestre em Serviço Social, ao Programa

de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Es-

tado do Rio de Janeiro (UERJ), em 2013.

Em função das particularidades de como se deu a política de

isolamento compulsório dos doentes de lepra e do afasta-

mento dos seus filhos sadios no município do Rio de Janeiro

e em alguns municípios dos estados de São Paulo e Minas

Gerais

3

, selecionamos histórias de sujeitos com origens nes-

tas regiões. Para tanto, entendemos como fundamental o uso

da metodologia da pesquisa qualitativa, baseada na técnica de

história oral a partir de entrevistas fundamentadas na moda-

lidade de histórias de vida, que objetivam

conhecer a parti-

cipação ou a visão do entrevistado a respeito do tema que

estamos pesquisando.Além disso, recorremos a

o uso de ma-

terial etnográfico e de informações que pertencem ao Movi-

mento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hansenía-

se (Morhan), cujo acesso fora previamente autorizado.

Foram analisadas 12 histórias de vida de pessoas separadas

de seus pais, que, por sua vez, foram isolados por terem sido

acometidos pela lepra. Sobre a metodologia, realizou-se cin-

co entrevistas presenciais, gravadas e transcritas, e a pesquisa

documental com fontes secundárias, com sete histórias de

sujeitos com este perfil. Dentre este total, o público-alvo foi

composto por um depoente que viveu no Preventório Santa

Maria no Rio de Janeiro/RJ; um ex-interno no Preventó-

rio de Goiás; um criado por familiares no Rio de Janeiro/

RJ; um institucionalizado no Preventório SantaTerezinha em

Carapicuíba/SP e, em seguida, adotada; duas pessoas cuida-

das por familiares no estado de Minas Gerais; três pessoas

criadas no Preventório Carlos Chagas em Juiz de Fora/MG,

e três pessoas educadas por familiares no estado de São Pau-

lo. Sete entrevistados eram do sexo masculino e cinco do

Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical