87
A n a i s d o I HM T
contra a Lepra justificava as medidas como meio de preser-
var os filhos dos leprosos, considerando que os doentes não
podiam decidir por si:
(...) doentes são intransigentes, intolerantes e não tem noção
exata do que é melhor para eles. Cabe a nós, que felizmente
temos bom senso, sentimentos humanitários e elevada for-
mação moral, ajudá-los e orientá-los com brandura e com-
preensão, (...) parte do nosso trabalho
[8].
As visitas às crianças nos preventórios eram dificultadas pela
profilaxia. Alguns depoentes relatam que quando ocorriam,
elas eram feitas de modo semelhante ao adotado nos leprosá-
rios, onde familiar e doente não poderiam manter contacto
físico e/ou receber objetos ou presentes. Há relatos de pais
que foram presos nos leprosários por terem visitado seus
filhos. Muitos até arriscavam sair com a criança escondida
dentro de bolsas.
Era assim: vamos imaginar uma sala com janela, os filhos
do lado de dentro e as mães do lado de fora. A gente não
podia ter contato. Era só de longe. Só minha mãe que ia me
visitar. (...) fugia pra abraçar
ela.Aía diretora falava:‘você
sabe que não pode abraçar, você sabe que é filha de leprosa’.
Eu apanhava muito por isso. (...) A lembrança mais forte
foi quando eu tive o primeiro contato com minha mãe. (...)
teve que mudar toda aparência porque na época não podia
entrar. (...) Aí falou no meu ouvido:‘minha filha eu sou sua
mãe,mas você não pode falar que sou sua mãe porque se você
falar vão me botar pra fora’
(M. D, 2013).
As cartas escritas pelos pais, em geral, continham pedidos de
permissão para ver os filhos, receber notícias, ou fotografias
deles. Contudo, devido às restrições para o acesso a alguma
informação sobre a vida dos internos, muitas vezes, tais car-
tas se limitavam a registrar o sentimento dos pais por viver
longe dos filhos, como retrata o poema abaixo, escrito por
um ex-doente de lepra, após o nascimento de seu filho:
Meu filho
Há bem pouco nascestes e já te vais.
Nem eu nem tua mãe te deu um beijo
Como é triste o destino que praguejo:
Ter um filho e vê-lo órfão tendo pais
Não nos verás...não te veremos mais.
E na dor não verá o teu gracejo
Quem te esperava no maior festejo
Entre alegrias que se tornam em ais.
Meu pobre filho, prá maior tormento
Nem repousaste um só momento
No teu bercinho enfeitei de flores.
Ó dor que desespera e dá vertigem!
Tua mãe, vejo louca como a virgem
Quando a Jesus buscava entre os doutores
[13].
Sobre estigma e representações sociais
(...) No jardim de infância era bom, pois a professora era
muito boa pra gente. (...) passei para 2ª serie, eu comecei
a perceber as diferenças entre as crianças do educandário e
as crianças da rua. (...) xingavam a gente de leprosinhos e
também xingavam nossos pais
(E.A, 2013).
Após serem internados nestas instituições totais, os filhos sa-
dios de doentes de lepra poderiam ser vistos como à margem
dos que foram marginalizados antes, ou seja, seus pais. Por
este motivo, pode-se dizer que se tornaram duas vezes estig-
matizados: de um lado, por serem filhos de doentes de lepra
e carregar os estigmas atribuídos aos pais; e de outro, por
terem sido criados em preventórios ou educandários.
A história de Um entre Milhares
(...) O meu, é somente mais uma história de um ser humano
marcado pelas discriminações e preconceitos.
(...) genitor e portador de hanseníase desde a década de 50,
que ainda novo perdeu sua liberdade de viver em sociedade,
passando a ser discriminado, indo viver enclausurado (...)
um monstro social.
(...) mais que pai, era meu protetor, meu guardião. Porém o
destino permitiu que alguém felizmente olhasse para ele, o
que desencadeou no pior para nosso relacionamento de pai
e filho, nossa separação. (...) Filho sem presença e carinho
da mãe, e agora de pai, mesmo sem ser hanseniano, tive a
mesma sorte de meu guardião,levado pelas mãos de terceiros,
fui posto em um educandário (...) muralhas que se quer do
lado de dentro se podia ver as ruas,marcado por um número,
como se fosse pequeno animal recém-nascido entre um re-
banho de tantos outros com histórias diferentes, mas que se
aproximavam pelo abandono e solidão. (...) era só perguntas
e pensamentos: Porque eu estaria pagando? Onde errei? Que
crime eu havia cometido, se eu era apenas uma criança? (...)
terceiros, tios e primos, e outra vez fui recomeçar uma nova
vida aos 10 anos de idade. Deixei muralha, mais jamais
esqueci o que passei atrás delas, e ainda me perguntava por
trás dos muros sociais,se realmente seria uma nova vida.(...)
mas os preconceitos pareciam incrustados em mim. Eu havia
nascido para viver e conviver com ele, até entre os supostos
parentes a discriminação era latente. (...) Cansei de todos,
das humilhações e do abandono disfarçado de família, e aos
15 anos tomei minha decisão: Calquei as ruas, fazendo as
calçadas, minha cama e tendo as marquises como teto, mas
sempre com o pensamento firme. Ser apenas o pouquinho
mais do que era, o pouquinho que queria ser e sou hoje, sem
nunca decepcionar o meu guardião, mesmo estando longe e
sozinho. (...) fui roubado da minha infância? Do convívio
familiar? Porque minha estrela foi apagada? O que eu fiz
para ter essa sorte? (...) filme, que não possui outro capítulo,
deixo por conta e obra da vida e dos senhores chefes e admi-
nistradores dessa nação chamada Brasil
(J. B, 2013).