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A n a i s d o I HM T

contra a Lepra justificava as medidas como meio de preser-

var os filhos dos leprosos, considerando que os doentes não

podiam decidir por si:

(...) doentes são intransigentes, intolerantes e não tem noção

exata do que é melhor para eles. Cabe a nós, que felizmente

temos bom senso, sentimentos humanitários e elevada for-

mação moral, ajudá-los e orientá-los com brandura e com-

preensão, (...) parte do nosso trabalho

[8].

As visitas às crianças nos preventórios eram dificultadas pela

profilaxia. Alguns depoentes relatam que quando ocorriam,

elas eram feitas de modo semelhante ao adotado nos leprosá-

rios, onde familiar e doente não poderiam manter contacto

físico e/ou receber objetos ou presentes. Há relatos de pais

que foram presos nos leprosários por terem visitado seus

filhos. Muitos até arriscavam sair com a criança escondida

dentro de bolsas.

Era assim: vamos imaginar uma sala com janela, os filhos

do lado de dentro e as mães do lado de fora. A gente não

podia ter contato. Era só de longe. Só minha mãe que ia me

visitar. (...) fugia pra abraçar

ela.Aí

a diretora falava:‘você

sabe que não pode abraçar, você sabe que é filha de leprosa’.

Eu apanhava muito por isso. (...) A lembrança mais forte

foi quando eu tive o primeiro contato com minha mãe. (...)

teve que mudar toda aparência porque na época não podia

entrar. (...) Aí falou no meu ouvido:‘minha filha eu sou sua

mãe,mas você não pode falar que sou sua mãe porque se você

falar vão me botar pra fora’

(M. D, 2013).

As cartas escritas pelos pais, em geral, continham pedidos de

permissão para ver os filhos, receber notícias, ou fotografias

deles. Contudo, devido às restrições para o acesso a alguma

informação sobre a vida dos internos, muitas vezes, tais car-

tas se limitavam a registrar o sentimento dos pais por viver

longe dos filhos, como retrata o poema abaixo, escrito por

um ex-doente de lepra, após o nascimento de seu filho:

Meu filho

Há bem pouco nascestes e já te vais.

Nem eu nem tua mãe te deu um beijo

Como é triste o destino que praguejo:

Ter um filho e vê-lo órfão tendo pais

Não nos verás...não te veremos mais.

E na dor não verá o teu gracejo

Quem te esperava no maior festejo

Entre alegrias que se tornam em ais.

Meu pobre filho, prá maior tormento

Nem repousaste um só momento

No teu bercinho enfeitei de flores.

Ó dor que desespera e dá vertigem!

Tua mãe, vejo louca como a virgem

Quando a Jesus buscava entre os doutores

[13].

Sobre estigma e representações sociais

(...) No jardim de infância era bom, pois a professora era

muito boa pra gente. (...) passei para 2ª serie, eu comecei

a perceber as diferenças entre as crianças do educandário e

as crianças da rua. (...) xingavam a gente de leprosinhos e

também xingavam nossos pais

(E.A, 2013).

Após serem internados nestas instituições totais, os filhos sa-

dios de doentes de lepra poderiam ser vistos como à margem

dos que foram marginalizados antes, ou seja, seus pais. Por

este motivo, pode-se dizer que se tornaram duas vezes estig-

matizados: de um lado, por serem filhos de doentes de lepra

e carregar os estigmas atribuídos aos pais; e de outro, por

terem sido criados em preventórios ou educandários.

A história de Um entre Milhares

(...) O meu, é somente mais uma história de um ser humano

marcado pelas discriminações e preconceitos.

(...) genitor e portador de hanseníase desde a década de 50,

que ainda novo perdeu sua liberdade de viver em sociedade,

passando a ser discriminado, indo viver enclausurado (...)

um monstro social.

(...) mais que pai, era meu protetor, meu guardião. Porém o

destino permitiu que alguém felizmente olhasse para ele, o

que desencadeou no pior para nosso relacionamento de pai

e filho, nossa separação. (...) Filho sem presença e carinho

da mãe, e agora de pai, mesmo sem ser hanseniano, tive a

mesma sorte de meu guardião,levado pelas mãos de terceiros,

fui posto em um educandário (...) muralhas que se quer do

lado de dentro se podia ver as ruas,marcado por um número,

como se fosse pequeno animal recém-nascido entre um re-

banho de tantos outros com histórias diferentes, mas que se

aproximavam pelo abandono e solidão. (...) era só perguntas

e pensamentos: Porque eu estaria pagando? Onde errei? Que

crime eu havia cometido, se eu era apenas uma criança? (...)

terceiros, tios e primos, e outra vez fui recomeçar uma nova

vida aos 10 anos de idade. Deixei muralha, mais jamais

esqueci o que passei atrás delas, e ainda me perguntava por

trás dos muros sociais,se realmente seria uma nova vida.(...)

mas os preconceitos pareciam incrustados em mim. Eu havia

nascido para viver e conviver com ele, até entre os supostos

parentes a discriminação era latente. (...) Cansei de todos,

das humilhações e do abandono disfarçado de família, e aos

15 anos tomei minha decisão: Calquei as ruas, fazendo as

calçadas, minha cama e tendo as marquises como teto, mas

sempre com o pensamento firme. Ser apenas o pouquinho

mais do que era, o pouquinho que queria ser e sou hoje, sem

nunca decepcionar o meu guardião, mesmo estando longe e

sozinho. (...) fui roubado da minha infância? Do convívio

familiar? Porque minha estrela foi apagada? O que eu fiz

para ter essa sorte? (...) filme, que não possui outro capítulo,

deixo por conta e obra da vida e dos senhores chefes e admi-

nistradores dessa nação chamada Brasil

(J. B, 2013).