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A n a i s d o I HM T
Nunca fiquei sabendo na minha vida morando em educan-
dário, nunca fiquei sabendo que aquele educandário era
motivos de leproso ou doenças perigosas, eu nunca fiquei
sabendo (...) a única coisa que me falavam que foi meu pai
que me deixou no colégio, educandário. E fui crescendo e
eles falavam que minha mãe tinha morrido. (...) aí às vezes
eu até arrumava briga, xingava, falava que era mentira.Até
que um dia uma das diretoras me deu uma coça, porque eu
dizia que era mentira
delas.Aíela falou assim:‘se você quer
entender a sua vida, a sua vida é ninguém.Você é uma João
ninguém’. Isso me doeu muito
(M. C, 2013).
As crianças eram separadas, inclusive, de apenas um dos pais
doentes, podendo conviver com diferentes pessoas [6]. O de-
poimento a seguir narra uma trajetória de vida marcada pela
instabilidade quanto a moradia e a ausência de referências.
Quando minha mãe foi isolada, os filhos foram entregues
a familiares e os três filhos mais novos foram enviados para
internatos. No meu caso, fui entregue para minha madrinha
com 7 anos onde fiquei até meus 14 anos, após voltei para
casa do meu pai onde morei até aos 16 anos, após fui morar
com minha vó materna,após morei com minha irmã e depois
casei
(M. H, 2012).
O Regime Interno dos Preventórios definia que a convivên-
cia das crianças com a família fosse evitada, bem como sua
permanência com os pais dentro das colónias [8]. O docu-
mentário Filhos Separados
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destaca essa proibição e revela
uma série de denúncias de violações pelas quais estas pessoas
foram submetidas no espaço preventorial.Além de agressões
físicas e verbais, há também relatos de ocorrência de abuso
sexual e tortura dentro dos preventórios. Um ex-interno
declara: “Não gosto de Irmã não, não gosto mesmo”, se refe-
rindo às religiosas, representantes do Estado e da sociedade
nos cuidados com as crianças.
(...) avisou que a presidente iria vir no educandário, se ela
me visse marcada que era pra eu dizer que tinha brigado.
Só que quando a presidente chegou ela foi lá no pátio das
meninas e mandou eu ir pro dormitório ficar lá bem
quie-
tinha. Mas só que a presidente mandou ela me chamar pois
eu tinha ganhado um presente da madrinha da Alemanha.
Aí a ‘peste’ foi pessoalmente me chamar e me pediu que eu
não falasse que ela tinha me deixado marcada. Eu fiquei
quieta, mas quando a presidente me viu toda marcada ficou
apavorada e me perguntou o que tinha acontecido comigo.
Eu falei a verdade, não menti. Falei na frente dela e ela fi-
cou me olhando fazendo cara de que depois iria me bater de
novo. Só que a presidente ficou muito irritada e começou a
gritar com ela falando que ela não devia ter feito o que fez
e ainda disse pra ela:‘que dor essa criança sentiu’ e que por
pouco ela não me matou já que eu era uma criança que vivia
fazendo acompanhamento médico por causa do problema de
coração, e que tinha muitas hérnias. Foi quando ela falou
que iria mandar ela ir embora. (...) Foi muito bom pra mim
e para as outras crianças, pois a nova diretora era boa, mais
compreensiva. Ela entendia a nossa situação porque ela era
mais humana, passou a dar mais carinho pra gente.Quando
chegou o dia da gente visitar os nossos pais no Curupaiti,
ela pediu o diretor daquela época que deixasse os pais tocar
na gente porque ela disse que a gente não ia ficar doente
(E.A, 2013).
Além dos aspetos de violência observados, vimos que a com-
preensão destes sujeitos sobre tratamento humano, se limi-
tava a carinho e direito de ser tocado. Isso porque, de forma
geral, no cotidiano das crianças, incidia severos castigos e
tentativas de adestramento, como se pode ver nestes depoi-
mentos:
Um mês que passei lá foi horrível fazia muita covardia, to-
mava banho na água fria de madrugada.Apanhava muito, a
comida não era muito boa e na maioria das vezes ficava sem
comer
(A. F, 2010).
Fui recém-nascido e começou os maus tratos, alimentação
ruim, e quando me davam alimentação boa, era travada por
outras pessoas, banho frio, roupas ruim, apanhava muito, fi-
cava de castigo em cima de britas, ajoelhados, tomava até
medicações sem controlo médico. (...) Apanhava pouco, por
pouca coisa. Não tinha uma boa educação, e tinha muito
fialho na calça, passava muita fome
(A. G, 2010).
Sobre a rotina nos preventórios
Adentrar o território preventorial requeria adaptar-se à
nova rotina e aos padrões de comportamento. Os preven-
tórios eram regidos por um autoritarismo contundente, um
ambiente disciplinar bastante austero onde as crianças se
submetiam às regras. Os relatos revelam nestas instituições,
uma estrutura e modos de convivência bem definidos para
seus fins, como separar crianças por sexo, inseri-las em ati-
vidades diárias de trabalho e fazer cumprir as normas, sob
ameaça de punições.
Eu acho que era quatro pavilhões, a parte de baixo de um
pavilhão ficava os meninos, tinha uma escada, a parte de
cima era das meninas (...) tinha 9, 10 anos quando falta-
va funcionário a noite, eles sempre chamava uma ou duas
7 - Desde 1950, uma campanha buscava eliminar toda forma de preconceito em re-
lação à lepra e seus portadores.Através da Federação das Sociedades de Assistência
aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, os preventórios passam a se chamar Educan-
dários. Quanto ao termo “lepra”, a Portaria Ministerial nº. 165/BSD, de 4 de maio
de 1976, sugeria a sua alteração, que foi efetivada com a Lei n°. 9.010, de 29 de
março de 1995. Seu uso continua público, bem como o preconceito e o estigma [8].
8 - Os depoentes foram identificados pela abreviação dos nomes e o ano da entre-
vista ou do material pesquisado.
9 - Documentário produzido pelo Museu da Oralidade emTrês Corações/MG em
2012. Disponível em:
www.morhan.org.br.