84
vez que apresentavam bom quadro clínico e com frequência
eram submetidos a exames para verificar se estavam com a
doença.
Além de facilitar sua administração, outro forte argumento
utilizado em defesa da construção dos preventórios nas cidades
era o facto de que as crianças poderiam ter maiores possibili-
dades de socialização e, consequentemente, de se adaptarem
melhor a vida fora destes estabelecimentos. Nelson Campos
e Luiz Bechelli, médicos do Departamento de Profilaxia da
Lepra do Estado de São Paulo, viam benefícios na localização
central dos preventórios, inclusive, para minimizar o estigma
e contribuir para as vantagens que a mudança de nome preven-
tório para educandário
7
poderia trazer [8].
Entretanto, a resistência da população urbana de abrigar em
sua proximidade crianças que conviveram com doentes de
lepra, poderia ser interpretada e, por vezes, reforçada pelos
meios de comunicação, de maneira preconceituosa.A exem-
plo disso, vimos um artigo do
Jornal de Goyas
, publicado em
26 de junho de 1941:
(...) Mas há uma classe de crianças pobres, sem am-
paro dos pais, que não são aceitas nos lares abastados,
nem nos asilos, nem tampouco nos hospitais.
Ninguém as quer, nem mesmo os internados escola-
res, quando podem pagar escolas.
Todos as evitam com muita precaução, com muito
medo.
Quem são essas crianças?
Porque todos fogem delas?
Por que não encontram amparo na sociedade?
São crianças iguais às outras.
Mas são filhos de leprosos.
Eis a razão: filhos de leprosos!
A sociedade repele amedrontada esses meninos por-
que a doença de seus pais é contagiosa, terrível, mu-
tilante e impiedosa [8].
Com esses elementos, a construção dos preventórios no Bra-
sil, em sua maioria, deu-se em regiões afastadas das cidades
e dos leprosários. Mesmo após comprovação científica que,
sob o ponto de vista profilático, os filhos dos doentes de lepra
não apresentavam riscos à sociedade, as autoridades sanitá-
rias impediam os preventórios próximos aos leprosários.
A primeira iniciativa de construção de um preventório no
país ocorreu em 1922, quando um grupo de senhoras da
alta sociedade paulista deu início a execução de um projeto
que objetivava abrigar crianças com este perfil. Em 1927,
apoiado em doações filantrópicas, é inaugurado na cidade de
Carapicuíba/SP, o PreventórioTerezinha do Menino Jesus. E
a partir do final de 1940, tem-se à instalação de preventórios
na zona rural, na proporção de 18 unidades rurais para nove
urbanas [8].
O artigo 1° do Regimento Interno dos Preventórios definia
como objetivos:
(...) acolher, manter, educar e instruir menores sa-
dios filhos de conviventes de doentes de lepra, desde
que não tenham parentes idóneos que queiram assu-
mir esse encargo e que disponham de recursos para
educá-los e mantê-los sob a vigilância das autoridades
sanitárias competentes [10].
Em cada estado brasileiro foi instalado, pelo menos, uma
instituição preventorial, exceto em algumas unidades fede-
rativas, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que
em virtude da alta incidência da moléstia e por contar com
um maior número de leprosários, tiveram dois ou mais pre-
ventórios. A maioria deles foram construídos por organiza-
ções filantrópicas, subsidiado por recursos governamentais
e o seu processo de ampliação ocorreu de maneira gradual,
sobretudo no governo de GetúlioVargas [9].Até a década de
1960, foram criados 31 Educandários, embora alguns não ti-
vessem atuação exclusiva no tratamento destas crianças.
No contexto da política pública de combate à lepra no Brasil
importava que os sãos estivessem a salvo, livre do contágio, das
deformidades, da ameaça aos nobres traços do ser humano e
da incapacidade para o trabalho. Elementos vistos nos jornais
da época: “o filho do lázaro, que hoje brinca despreocupado ao
lado do teu filho, talvez traga consigo o germe do mal terrível.
Trabalha, pois, em prol do ‘Preventório’, a fim de resguardar
dos perigos da lepra aqueles que te são caros” [11].
Ante ao exposto, vimos que tal política não se ateve aos
efeitos adversos da violência gerada pelo desmantelamento
brusco do grupo familiar, cujos impactos se traduzem sob
diversos âmbitos. Na correlação de forças que foi instaurada,
o saber científico foi posto acima das relações naturais que
unem pais e filhos, reduzindo os meios familiares e reprodu-
zindo uma geração de órfãos da saúde pública brasileira.
Vozes da infância da lepra no Brasil
Para apresentar os resultados da investigação empírica, or-
ganizamos os relatos derivados das entrevistas de história
oral
8
[12] com os depoentes a partir dos seguintes eixos de
análise:
Sobre a separação familiar
“Nasci no Curupaiti, com 2 horas de vida já era levado pra lá.
Recém nascido” (E.E, 2013).
Do ponto de vista científico, o modelo profilático para o
controlo da lepra no Brasil buscou afastar os filhos sadios
dos doentes devido ao risco de contágio. Contudo, vimos
o quanto tal modelo favoreceu o desconhecimento dos su-
jeitos sobre suas próprias origens. A separação familiar re-
presentava uma das diversas formas de violência, conforme
abaixo:
Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical