83
A n a i s d o I HM T
feminino; a faixa etária do grupo era entre 41 e 65 anos.
Os resultados desta pesquisa revelaram que um dos grandes
impactos da medida de segregação e afastamento dos doen-
tes de seus filhos, foi o aprofundamento do estigma na socie-
dade brasileira sobre a história da lepra e, em consequência,
da hanseníase. Assim, como efeitos perversos, vimos o rom-
pimento dos vínculos destes sujeitos com a família e com as
redes de sociabilidade, conformando um modo de discrimi-
nação social que se traduz na história de vida e na trajetó-
ria social de diferentes formas. Importante ressaltar que tal
trabalho foi submetido e aprovado pelo Comité de Ética em
Pesquisa da UERJ
4
. Logo, a identificação dos depoentes e os
dados analisados que conformaram os resultados desta in-
vestigação, foram tratados sob o rigor da ética em pesquisa,
além do uso do termo de consentimento livre e esclarecido,
garantindo o sigilo das informações. Nosso objetivo é que
este artigo possa contribuir com a compreensão acerca da
história de uma infância institucionalizada, narrada nas vozes
dos sujeitos que ficaram órfãos pela política de saúde pública
para a lepra no Brasil.
Profilaxia e confinamento
Vimos que no século XX, a preocupação com a criança sadia,
filha de paciente de lepra, se destacou no Brasil a partir da
década de 1920. Neste contexto, a política de construção
dos preventórios foi reflexo das medidas sanitárias adotadas
no país, visando o combate e o controlo da doença.
O Decreto nº. 16.300, de dezembro de 1923, que regula o
Departamento Nacional de Saúde Pública no que diz respei-
to à Prophylaxia Especial da Lepra, afastava os filhos sadios
do convívio familiar e os segregava em instituições criadas
para isto. Dentre os artigos do Decreto, destacam-se, os ar-
tigos 148 e 161:
Art. 148. No estabelecimento de leprosos, além das dispo-
sições já determinadas e das que forem prescritas em seus
regimentos internos
5
, serão observadas também:
a) os filhos de leprosos, embora um só um dos progenito-
res seja doente, serão mantidos em secções especiais, anexas
às áreas de pessoas sãs do estabelecimento, para onde serão
transportados logo depois de nascidos;
b) essas mesmas crianças não deverão ser nutridas ao seio de
uma ama e não serão amamentadas pela própria mãe se esta
for leprosa.
Art. 161. O doente isolado em domicílio, além das reco-
mendações que em cada caso serão feitas pela autoridade sa-
nitária, deverá cumprir as seguintes determinações:
a) afastam-se sempre das crianças que residam ou permane-
çam no domicílio [8].
A palavra Preventório
6
é definida como: internato para
crianças predispostas a certas doenças, ou estabelecimento
onde são tratadas preventivamente filhos de leprosos ou tu-
berculosos, que são criados separados dos pais para evitar
contágio.
A prática do isolamento preventorial fora internacionalmen-
te recomendada por leprologistas em vários tratados cien-
tíficos, que definiam que, na transmissão da lepra, o meio
familiar ou doméstico e a maior suscetibilidade da infância
favoreciam o contágio. Em pesquisas realizadas em países
endémicos, dentre eles o Brasil, estudiosos observaram que
as crianças eram mais facilmente infetadas e deveriam ser
submetidas a maior vigilância após exposição a um doente.
Para eles, tal vigilância aplicada nos preventórios, se dava
como medida profilática eficiente, que passou a ser defen-
dida no Brasil, a partir de 1916, por Heráclides César de
Souza-Araújo [8].
Em razão do entendimento que as crianças poderiam desen-
volver o bacilo da doença em outras fases da vida, elas chega-
ram a ser classificadas como “leprosos” em potencial, alimen-
tando o medo e o preconceito da sociedade contra os filhos dos
doentes. Em São Paulo, as crianças eram submetidas a exames
periódicos nas dependências do Departamento de Profilaxia
da Lepra (DPL). Para Campos e Bechelli, “falhará, sem dúvi-
da qualquer organização que julgar suficiente o isolamento do
doente contagiante sem assistir e vigiar sua prole, sem manter
sob vigilância clínica suas comunicantes” [9].
A primeira instituição criada com esta finalidade foi o Pre-
ventório de Molokai, em 1880 no Havaí, tendo como pre-
cursor o Padre Damião. Tal iniciativa deveu-se, sobretudo,
em função do alto número de crianças saudáveis que convi-
viam entre os doentes de lepra na Ilha de Molokai. Por isso,
buscando preservar as crianças da contaminação da doença,
o padre decidiu separá-las dos enfermos, influenciando al-
guns países endémicos da América do Sul, como Brasil, Co-
lômbia e Argentina.
Alguns leprologistas acreditavam na eficácia da construção
dos preventórios próximo à área urbana e não aconselhavam
que estivessem perto dos leprosários, o que poderia ser pre-
judicial às crianças. Eles defendiam que a sociedade poderia
confundir uma instituição com a outra, inferindo aos me-
nores o estigma que atingia seus pais. Ademais, os filhos dos
doentes não ofereceriam risco à saúde da população, uma
1 -Compreendemos instituições totais como aquelas onde há a ruptura das barreiras
que comumente separam algumas esferas da vida do indivíduo que, geralmente, são
realizadas em diferentes lugares, com diferentes co-participantes, sob diferentes
autoridades e sem um plano racional geral [1].
2 - No Brasil, a Lei N° 9010, de 29 de março de 1995, alterou o termo Lepra para
Hanseníase, com o objetivo de contribuir para a eliminação do preconceito em
torno do doente. Contudo, neste artigo, priorizamos a expressão lepra, tendo em
vista o caráter histórico que buscamos privilegiar.
3 - Ultrapassam os limites deste artigo a análise sobre as características de tal po-
lítica em cada uma destas regiões. Em linhas gerais, pode-se afirmar que foram
emblemáticas na história da assistência ao doente de lepra no país.
4 - Aprovado no dia 24/04/2013, sob o número 13764913.7.0000.5282.
5 - O “Regime Interno” foi adotado por todos os preventórios que recebiam sub-
venção federal e estavam ligados à Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra.Aprovado pelo Departamento Nacional da Saúde,
o documento foi publicado na Revista de Combate à Lepra em março de 1941, p.
48-52 [8].
6 - www.dicionariodoaurelio.com.Acesso em 06 de junho de 2013.