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Introdução
O enfrentamento de desafios e a persistência em resolvê-los
buscando todos os meios possíveis parece ter sido um perfil co-
mum aos grandes nomes da ciência em nosso planeta, ao longo
do tempo. Muitos foram considerados loucos, alguns tiveram
suas descobertas questionadas e rechaçadas, outros foram alija-
dos da sociedade ou mesmo mortos, em consequência de suas
buscas. Geralmente, o reconhecimento da conquista tem vindo
num intervalo de tempo além do período de vida daquele ou
daquela cientista.Trazer a memória da trajetória deVital Brazil e
da sua contribuição para a medicina tropical faz parte do resgate
desse reconhecimento e é o objetivo deste trabalho.
O Dr.Vital Brazil
A trajetória do médico e sanitarista brasileiroVital Brazil Minei-
ro da Campanha (1865-1950), nascido na pequena cidade de
Campanha, sul do estado de Minas Gerais, transcorreu em um
dos períodos históricos recentes mais revolucionários e inova-
dores para a humanidade.Mais conhecido como Dr.Vital Brazil,
enfrentou seus primeiros desafios ainda na infância e adolescên-
cia pelas dificuldades financeiras familiares, as quais se seguiram
durante o curso de Medicina: estudar para ser médico [1].Desa-
fio enfrentado custeando com o seu trabalho (condutor de bon-
de, varredor de escola, professor) os estudos preparatórios em
São Paulo desde os 15 anos e dividindo com o pai o sustento de
uma familia já então com 7 irmãos [2]. Já no Rio de Janeiro, sede
da Corte Imperial, cursou a Faculdade de Medicina, onde se
formou em Ciências Médico-cirúrgicas em 1891, defendendo a
tese: Funções do baço [2].Ao iniciar suas atividades profissionais
na cidade de Botucatu (1895), interior de Minas Gerais, sur-
giu o seu segundo grande desafio: obter um medicamento para
curar o envenenamento por serpentes que afligia os agricultores
pobres do Brasil. Numa época em que o único tratamento para
esses acidentes era aquele que os caboclos “curadores de cobra”
ofereciam, emplastros de raízes de plantas e rezas, montou um
pequeno laboratório em sua própria casa, venceu o medo inato
das cascavéis trazidas pelos caboclos, extraiu o veneno injetado
pelas serpentes em um algodão hidrófilo e experimentou-o face
aos diversos vegetais da
região.Osresultados... todos negativos.
Foi a leitura dos estudos de um pesquisador francês seu contem-
porâneo,Albert Calmette (1863-1933), que mostrava a eficácia
de um soro antiofídico na Indochina, que lhe deu a base concei-
tual da soroterapia antiveneno e o impeliu a retornar a São Paulo
e procurar o apoio para suas pesquisas no recém instalado Ins-
tituto Bacteriológico de São Paulo (1892). Primeira instituição
brasileira dedicada a exames bacteriológicos e parasitológicos e
pesquisas voltadas à saúde pública, essa instituição aceitou o jo-
vem doutor, como ajudante, em 1897 [3]. Foi aí queVital Brazil
extraiu a peçonha das serpentes mais frequentes da região (cas-
cavel, urutu, jararacussu), determinou as quantidades de veneno
líquido e após secagem, e suas doses letais para vários animais
de laboratório. Utilizou o soro antiveneno de Calmette, prepa-
rado no Instituto Pasteur de Lille (França), a partir do veneno
da serpente
Naja tripudians
(família Elapidae), mas os resultados
foram também negativos [4]. Descreveu com exatidão os sinais
e sintomas apresentados e as alterações macroscópicas encon-
tradas nos animais mortos. Mostrou, pela primeira vez, que os
sintomas e as alterações anatomopatológicas do envenenamento
experimental pelo veneno da cascavel (
Crotalus durissus
) diferiam
acentuadamente daquele da jararaca (
Bothrops
spp) e da urutu
(
Bothrops alternatus
), todas da famíliaViperidae.A partir daí, fez
experimentos com imunização de cães, cabritos, bois e cavalos
e concluiu (1898) pela especificidade dos soros anti-ofídicos [3],
conforme demonstrou em suas primeiras publicações na Revis-
ta Médica de São Paulo, em 1901 [4]. Conclusão esta que con-
trariava, definitivamente, os pressupostos de Calmette de que o
soro produzido por este neutralizaria todos os outros venenos
ofídicos.
Seu terceiro desafio veio em decorrência do seu perfil social e
humanitário: fabricar o soro. A invasão da peste bubónica em
Santos (São Paulo), em 1899, foi o facto que originou a ideia
de implantar instituições que preparassem um soro curativo no
Brasil, uma vez que o único tratamento (soro anti-pestoso) vi-
nha apenas do Instituto Pasteur de Paris (França) [4]. Foi Vital
Brazil, enviado pelo Instituto Bacteriológico àquela cidade para
verificar a existência da epidemia, quem demonstrou a presença
da enterobactéria (
Pasteurella pestis
1
), o que foi confirmado pelos
outros pesquisadores que ali chegaram, entre os quais o jovem
médico Oswaldo Cruz [3].
Assim, no Rio de Janeiro foi criado o Instituto de Manguinhos,
sob a liderança de Oswaldo Cruz e em São Paulo o Instituto de
Butantan (oficialmente Instituto Serumtherapico do Estado de
São Paulo), sob a liderança deVital Brazil.Ambas as instituições
nasceram ao mesmo tempo e com os mesmos objetivos, a pri-
meira no âmbito federal e a segunda no estadual. Sob a direção
deVital Brazil, o Instituto de Butantan se transformou gradativa-
mente num centro de pesquisas e produção na área do ofidismo
e de acidentes por outros animais peçonhentos, reconhecido in-
ternacionalmente.Após 19 anos de intensa produção científica e
tecnológica e uma administração que criou, alicerçou e exaltou
o nome da instituição,Vital Brazil pede demissão. Motiva a sua
saída o confronto de atitudes com o Serviço Sanitário do Estado
de São Paulo. Com a sua saída, o Instituto passou por sérias di-
ficuldades e, em 1924,Vital Brazil foi solicitado a reorganizá-lo,
retornando à sua direção, onde ficou até 1929 [3].Aos 54 anos,
viúvo há seis anos, com nove filhos, tendo alcançado o reconhe-
cimento mundial pelo conjunto da sua obra, tendo contribuído
enormemente para diversos campos da saúde pública do país,
Vital Brazil viu-se, por razões alheias e acima da sua vontade,
forçado a recomeçar a sua vida. Optou pela cidade de Niteroi,
Rio de Janeiro, onde ergueu, junto com colaboradores, outro
marco do património científico nacional: o InstitutoVital Brazil.
Fundada em parceria com o governo do Estado do Rio de Ja-
neiro, a instituição que iria dirigir durante três decadas [1].
Ao fundar o Instituto Butantan (1899) e o InstitutoVital Brazil
Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical