23
A n a i s d o I HM T
as acusações internacionais de que em Angola se praticava
“uma escravatura laboral” [17,18]. Logo após o congresso,
emAgosto, deu-se início à aplicação no terreno das suas con-
clusões.
Carlos d’Almeida, um colaborador de Froilano de Melo,
que, tal como este, tinha vindo da Escola Médica de Nova-
-Goa, é enviado em missão sanitária para o norte de Ango-
la (Congo e Zaire) onde permanecerá três anos.Tendo sido
programada para o combate à doença do sono, estendeu-se
depois a outras endemias, tais como boubas
9
, paludismo, va-
ríola (contra a qual se procedeu a uma vacinação maciça) e
bilharziose.
10
As três grandes medidas utilizadas foram: o afastamento pro-
gressivo das populações das matas, o isolamento dos doen-
tes crónicos e a esterilização pelo Atoxyl. Almeida chegava
a ver 360 doentes por dia, e se, inicialmente, a incidência
da doença atingia 12%, no final, “dificilmente se encontrava
um doente que me desse, para estudo de terapêutica expe-
rimental, tripanozomas (sic) no sangue periférico”
[16: 35].
Em 1928, em carta ao governador do Distrito do Congo,
informava-o de que não existia na região qualquer caso de
hipnose (nota: o mesmo que doença do sono) [16: 144].
Carlos d’Almeida, um homem generoso, que se empenhara
na luta contra as doenças, podia afirmar: “e assim passei anos
naquela perfeita embriaguez de fazer bem” [16: 26]. Como
forma de lhe agradecer o que fizera pelo seu povo, o Rei do
Congo, proclamou-o Príncipe, título que muito o orgulhava
[16: 26].
No final da sua missão, Almeida tinha observado 30.509
doentes distribuídos nas seguintes percentagens: doença
do sono, 61,887%, paludismo, 3,530%, boubas, 2,197%,
bilharziose, 0,170%, amibianas, 0,386% e outras doenças,
31,830% [16: 41].
Pela mesma época, e durante um ano utilizando, apenas, a
“atoxylização” maciça, Frederico Rebêlo, colocado no Zaire,
conseguia, praticamente, eliminar a doença do sono [19].
Como as populações locais recusavam internamento em
hospitais distantes de tipo europeu, foram construídas, neste
período, várias “Sanzalas-enfermarias” (fig. 2)
na proximi-
dade dos aldeamentos, em que os doentes ficavam alojados
em cubatas (pequenas casas com telhado de colmo), sendo
alimentados pela família. No final dos anos 20 havia dezenas
de sanzalas-enfermarias em todo o território de Angola, em
especial nas zonas já abrangidas pela AMI [20: 8].
Um dos aspetos principais da política de Norton de Matos
foi, como vimos, a assistência ao indígena, para o que tomou
várias medidas, como o reconhecimento dos seus direitos
laborais, o combate ao esclavagismo, e, no respeitante à saú-
de, a criação da AMI, pela qual Damas Mora se responsabi-
lizou.
Norton, “um nacionalista inveterado” [2: 462], um republi-
cano, considerava que Angola era portuguesa, e, para a de-
fender da cobiça dos ingleses e alemães, pôs em prática um
ambicioso plano de fomento, para a execução do qual lançou
mão de empréstimos feitos pela Bolsa estrangeira, numa es-
tratégia de “crescimento pelo défice” [2: 467].
Cercado, por um lado, por um grupo influente de colonos
que se sentiam ameaçados com a política indígena do Alto
Comissário, e, por outro, pelos grandes financeiros metro-
politanos, que o acusavam de despesista, Norton de Matos
vê-se confrontado com a demissão que lhe foi imposta pelo
governo central, sendo, no entanto, nomeado embaixador
de Portugal em Londres
11
. Sem o apoio do general, e alvo de
uma campanha contra si lançada pelo diretor de
A Província
de Angola
, Adolfo Pina, que o acusava de não ter tomado as
medidas necessárias para o controle de um novo surto de
peste bubónica, Damas Mora é exonerado, a seu pedido, das
funções que até então exercera emAngola [21, 22, 23].
Em fevereiro de 1924 regressa a Lisboa onde, numa espécie
de férias sabáticas, lhe são concedidos longos meses para a
redação das atas do congresso, publicados em 5 volumes com
um total de cerca de 2.900 páginas [17].
O ano 1925 foi um
annus horribilis
para a medicina tropical
portuguesa. Ayres Kopke, num congresso internacional em
Londres denegriu a ação dos nossos médicos coloniais [24],
o que Damas Mora jamais lhe perdoaria, e na Sociedade das
Nações o sociólogo americano Edward Ross publicou um
relatório com grande repercussão internacional (o
“Relatório
Ross”
), em que acusava as autoridades portuguesas de mante-
rem situações de escravatura [2: 478].
Na sequência deste relatório, mais uma vez, o governo por-
tuguês teme pela sua soberania sobre os territórios africanos
e aumenta com prodigalidade os respetivos orçamentos, o
que, como veremos, vai beneficiar o próximo Alto Comis-
sário emAngola.
Em 1926 vai dar-se um acontecimento que vai marcar o pen-
samento e a ação de Damas Mora. É o que ficou conhecido
como o
tour
de Dakar [25, 26, 27, 28]. A Sociedade das Na-
ções com o apoio da Fundação Rockefeller cria uma missão
6 -Tal como o seu mestre Ricardo Jorge, Damas Mora era um higienista e tinha da
Medicina uma visão social. Em1928, afirmava: “…o fim dos Serviços de Saúde do
Estado é cuidar dos sãos. O papel que pertence ao Estado é o da higiene social ou
preventiva visando conservar em pleno rendimento a população ativa e produtora.”
(Boletim de Assistência Médica aos Indígenas e Luta Contra a Moléstia do Sono,
1925, vol. II, 9 , 88) e em carta ao Ministro das Colónias, Armindo Monteiro:
“tenho pregado e insistido em que é indispensável orientar o serviço para a Higiene
Social, a única que interessa ao Estado porque tende a manter em plena atividade a
sua população produtiva” (Processo individual da AHU).
7 -A doença do sono era uma calamidade que Assunção Velho, um médico militar
cuja ação decorrera na década anterior, descrevia do seguinte modo: “as margens
do Quanza e as do Lucala, para não citar senão estes dois rios, eram outrora densa-
mente povoadas; a doença do sono tudo reduziu a melancólicas necrópoles”.Velho
A. (1921).ATripanossomose humana emAngola. Revista Médica de Angola, 2:14.
8 -A figura mais notável era o professor de Parasitologia da Faculdade de Medici-
na de Paris, Émile Brumpt (1877-1951), considerado a maior autoridade mundial
nesta matéria. Dos portugueses, participaram, entre outros, Ayres Kopke, Carlos
França e Froilano de Melo.
9 - Uma doença provocada pela bactéria
Spirochaeta pertenuis
, da família das Espiro-
quetáceas, a que pertence também o agente da sífilis.
10 - Doença provocada pelo parasita Schistosoma haematobium, que se manifesta,
muitas vezes, por hematúria.
11 - Um dos seus principais opositores, o engenheiro militar, jornalista e político
Francisco da Cunha Leal (1888-1970) escreveu um livro, em que atacava violen-
tamente o general, intitulado “Calígula em Angola”.Veja-se, também, José Norton
(2016). Norton de Matos – Biografia. D. Quixote, Lisboa, 326-350.