163
A n a i s d o I HM T
mente ressaltada na obra seguinte, constituindo o objeto
principal desta. Para ele, era manifesta a condição de suba-
proveitamento das potencialidades naturais de caráter te-
rapêutico originárias da colónia brasileira. Escreveu o frei
Jesus Maria ao final do prólogo que
(...) não deixando de lamentar, segundo as noticias, que ha
de Pessoas, que viveraõ nas Americas, a falta, que temos de
pôr na Praxe Medica a muitos vegetaes de conhecida effica-
cia, para varias queixas, que, dizem, tem descuberto com lar-
gas experiencias a rustica agilidade racional dos Caboucos
daquelles Estado; que, a ser certo, poderia haver com utili-
dade da saude, e crescido lucro, augmento no comercio, igual
ao que se vê nos generos, vindos de fora do Reyno
[6]
1
.
Frei Jesus Maria não foi o único a correlacionar que uma
melhor exploração das riquezas naturais da colónia se po-
deriam refletir no incremento do comércio, do lucro e
desenvolvimento da medicina. Na verdade, a ação indivi-
dual de desenvolver o conhecimento natural da Colónia
acompanhavam uma ação manifesta do Estado português
em racionalizar a exploração dos territórios ultramarinos
[7]. Um exemplo disso pode ser encontrado no excer-
to retirado da carta de António Nunes Ribeiro Sanches
(1689-1783) endereçada ao médico português, então ra-
dicado no Rio de Janeiro, Manoel Joaquim Henriques de
Paiva (1752-1829):
Os castelhanos que não têm os olhos mais perspicazes que
nós souberam fazer dos produtos da História natural da sua
América negócio de muito rendimento para eles e de muita
utilidade para a Europa.Tiveram a habilidade de fazer en-
trar no comércio a cochonilha, a quina, a jalapa, a contra-
-erva,os bálsamos,a cevadilha,(...).Nós tão desasados desde
duzentos anos não tivemos habilidade de fazer entrar no co-
mércio a raiz de mil homens,a casca barbatimão,a almeçaga
e outras mil raízes, frutos e cascas que podem servir na medi-
cina e nas artes tintas. E admiro-me como o óleo de copaíba
e a ipecacuanha chegaram a ser conhecidas (…)
[8].
Como expressaram os dois autores supracitados, uma flora
rica em potencialidades terapêuticas - assim como em poten-
cialidades comerciais - muitas vezes reconhecida pelos seus
atributos terapêuticos e largamente utilizada na colónia, per-
manecia em Portugal ainda passível de ser desvendada.
Flogisto, Linnaeus e plantas do Brasil
Ao longo do manuscrito
Historia Pharmaceutica das Plantas
Exóticas
, o frei Jesus Maria discorre longamente por quase
800 espécies diferentes de plantas com potencial terapêu-
tico. Como é patente em seu título, o objetivo da obra era
apresentar uma história natural
2
, usos e características das
principais plantas utilizadas na farmácia e que não cresciam
originalmente em Portugal. O livro é dividido em dez ca-
pítulos, onde o frei boticário ordena as plantas de modo a
agrupar em cada capítulo a estrutura morfológica melhor
adequada para o uso medicinal, com exceção do capítulo
décimo, dedicado exclusivamente aos fungos. Entre as cen-
tenas de plantas, é marcante a existência das espécies natu-
rais do Brasil entre elas. A exemplo dessas, encontra-se em
destaque o caju (
Anacardium occidentale
). Planta originária do
nordeste brasileiro, sua dispersão pelo globo possui ligação
direta com a
Carreia das Índias
, visto que a planta foi levada
do Brasil a Cabo Verde, e posteriormente a África e Ásia a
bordo das Naus que fazia o translado de especiarias orientais
para Europa [9].
Dentre as diversas espécies descritas por Jesus Maria, o
Ana-
cardum occidentale quorundam, Caju et Acajou
é definido pelo
autor como o natural do Brasil. Referente ao seu uso medi-
cinal, qual está circunscrito a sua noz, o frei escreveu que é
“(…) taõ urente, que untando ainda as de leve a cútis com
ella, a corroe, e queima, e se por descuido se avinca nos den-
tes, ulcera os labios, lingua, e mais partes da bocca com dor
summa (…)” [6]. Por sua característica de urticar ao mais
leve contato à cútis, Jesus Maria recomenda cautela em seu
uso; porém é justamente a característica urticante que ca-
racteriza seu caráter terapêutico. Mais a frente em seu texto,
escreveu o autor que:
(…) separaõ por expressaõ os habitantes hum óleo, que
alem de impedir a corrupção da madeira, tambem deles
se aproveitaõ na pintura; as melhores do paiz se valem
do succo acre desras nozes para maltarem os bichos, e
tirarem as manchas do rosto, pos corroendo-lhe a pelle, o
deixa em carne viva, vindo-lhe depois outra de novo, mais
se o fazem andando com seu mez, lhe sobrevem erysipelas,
e entre o uso medico serve de cauterio; havendo pessoa de
todo credito, que me seguro fazia expellir as secundinas,
e feito morto huâ inteira noz destas atada com linha, e
intrusa no orifício da vagina do utelo por alguâs horas,
e por fim dellas se tira
[6].
Como assinalado no excerto acima, os usos relativos as plan-
tas originárias do Brasil possuíam um forte caráter popular
no que tange a administração de suas propriedades terapêuti-
cas. Saberes tradicionais das populações nativas, assim como
dos habitantes da colónia, foram assimiladas na obra de Jesus
Maria como forma correta de administrar a prática terapêu-
tica relativa a tais plantas. Porém, essa assimilação não se deu
de maneira passiva, mas antes, traduzida de maneira a ser
coesa com os paradigmas médico-farmacêuticos defendidos
1 - Optou-se por manter a transcrição original dos textos publicados pelo frei João
de Jesus Maria, sem a sua adequação a normal contemporânea da língua portuguesa.
2 -A história natural era a disciplina relativa ao estudo de uma série de conhecimen-
tos relativos às espécies naturais.Tais conhecimentos hoje se dividem em diferentes
áreas autónomas, como a biologia, botânica, bioquímica e biogeografia.