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Introdução
Nos últimos anos, a relação saúde/ambiente tem vindo a ganhar
protagonismo no quadro dos principais temas em discussão na
agenda da Agência Europeia do Ambiente [1]. Este tema, que
começou por me parecer marginal a uma pesquisa mais centra-
da na relação entre a medicina tradicional e a biomedicina, aca-
bou por emergir naturalmente, tanto pela própria natureza dos
saberes tradicionais e das práticas fitoterapêuticas que envolve
a relação entre estas duas “medicinas”, como pela complexida-
de inerente à análise da implementação dos Serviços de Saúde
em Moçambique, na viragem do século XIX. E, efetivamente,
quando equacionada na perspetiva da relação saúde/ambiente, a
implementação destes Serviços coloca-nos todo um conjunto de
questões do domínio da articulação entre saúde/doença/cresci-
mento urbano/ambiente, mas, sobretudo, da forma como cada
um destes aspetos condicionou a ação destes Serviços, interferiu
na eficácia dos mesmos e determinou políticas específicas que,
sob a designação de políticas sanitárias, serviriam também para
corporizar medidas de segregação social.
Não é por acaso que, sem especificar o binómio saúde/ambien-
te, os poucos estudos que têm sido feitos sobre os Serviços de
Saúde sublinham a subordinação destes serviços aos objetivos de
domínio do território e das populações que caracteriza o sistema
colonial, e a sua ação como um dos principais veículos da atua-
ção deste sistema [2 e 3]. Suficientes serão as posições expressas
nos textos de Serrão de Azevedo [4] ou de Oliveira e Sousa [5]
para defender esta hipótese.Ambos expressaram, de forma cla-
ra e inequívoca, a componente de segregação social das medidas
propostas por estes serviços, sendo particularmente evidentes
no que respeita à criação de bairros para indígenas nos subúrbios
de Lourenço Marques, no início do século XX.
Oprimeiro,José deOliveira Serrão deAzevedo - Chefe do Servi-
ço de Saúde de Moçambique e membro da Comissão de Melho-
ramentos Sanitários da Cidade de Lourenço Marques em 1908
- propôs, defendeu e justificou a proibição dos indígenas viverem
na cidade, porque “A acumulação em que vivem os pretos (…)
em casas que são verdadeiros antros, com os hábitos de imundice
que os caracterizam, constitui um dos mais poderosos elementos
de insalubridade urbana e é um perigo permanente sob o ponto
de vista do alastramento de qualquer epidemia”[4].
Já o segundo, Oliveira e Sousa - vogal da Comissão de Melho-
ramentos Sanitários da Cidade de Lourenço Marques em 1908
-, subscreveu a criação de bairros indígenas na periferia da cida-
de, por estes poderem permitir “uma mais fácil vigilância, tanto
pelo lado administrativo, como sob o ponto de vista sanitário”,
acrescentando ainda que o ideal seria mesmo concentrá-los num
único bairro pois “a vigilância será tanto mais proveitosa quanto
menor for o número desses bairros” [5].
Mais do que qualquer outro fator, o africano surgia como sen-
do “o problema”, “a fonte de doença” que se tornava imperio-
so identificar, circunscrever, combater, neutralizar e dominar.
Evitar qualquer contato que pudesse pôr em perigo a saúde
e o bem-estar do colono, impunha-se como indispensável ao
exercício do domínio europeu sobre o espaço africano.
A relação é óbvia mas não exclui a necessidade de uma aborda-
gemmais abrangente em que, por exemplo, se considerem, por
um lado, as políticas de saúde pública e saneamento inerentes
ao crescimento urbano e desenvolvimento científico de finais
do século XIX (que obviamente não são exclusivas do contexto
colonial) e, por outro, como é que estas políticas se articularam
com esse mesmo contexto e assumiram particularidades que as
identificam como políticas coloniais.
Fontes e metodologia
Uma análise exaustiva desta temática envolve um sem número
de questões que não será possível abordar aqui e que merecem
tratamento, em sede própria, no quadro dos estudos coloniais.
Contudo, para qualquer dos trabalhos que venha a ser desen-
volvido neste domínio, há um conjunto de medidas e práticas
específicas, expressas na atuação dos vários serviços da admi-
nistração colonial, que simultaneamente resultam e suportam
esta relação entre desenvolvimento e saneamento urbanos/
melhoria da saúde pública, que transparece na documentação
produzida e nos parece merecedora de particular atenção.
De entre esta documentação destacam-se os Relatórios e Bo-
letins (mensais e anuais) produzidos pelos chefes do Serviço de
Saúde e do das Obras Públicas, publicados no Boletim Oficial
do Governo-Geral da Província de Moçambique (desde 1865
que a publicação passou a ser obrigatória no Boletim). Porém,
muitos documentos destes dois serviços persistem ainda em
arquivo, designadamente no Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU), e a sua análise pode contribuir para uma melhor com-
preensão das medidas propostas não só no âmbito da política
colonial como no da relação saúde/ambiente.
Nesta perspetiva, tendo por base a documentação de arquivo
ou publicada, produzida pelos Serviços de Saúde e pelos Ser-
viços de Obras Públicas de Moçambique na viragem do século
XIX, pretende-se apresentar e refletir sobre algumas dessas
medidas designadamente as que foram implementadas pelos
Serviços de Saúde em Lourenço Marques no domínio da assis-
tência ao indígena, e no contexto específico da medicina tro-
pical e da implantação do colonialismo em Moçambique.
Lourenço Marques na viragem
do século XIX: desenvolvimento urbano
e questões higiénico-sanitárias
No início do século XX, e em conformidade com um processo
de urbanização da colónia que remonta ao início do segundo
quartel do século XIX, Lourenço Marques apresentava-se como
uma promissora metrópole na ÁfricaAustral, sendo a ligação ao
Transval apontada como principal responsável pelo desenvolvi-
mento e crescimento do porto e da cidade. Nela se misturavam
gentes de todas as origens e ofícios, residentes ou de passagem,
Medicina tropical e ambiente