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Introdução
A primeira farmacopeia oficial de Portugal foi publicada em
1794, autoria do médico Francisco Tavares (1750-1812),
lente da Universidade de Coimbra e, posteriormente, médi-
co pessoal da rainha D. Maria I. Sob o título de
Pharmacopeia
Geral para o reino, e domínios de Portugal
, a sua publicação aten-
dia uma resolução presente nos
Estatutos Pombalinos (1772)
,
além de uma necessidade de basilar e normatizar o campo
farmacêutico dos fins do Século XVIII [1]. Todavia, até à a
impressão da
Pharmacopeia Geral,
foram impressas em Portu-
gal uma série de outras farmacopeias. Assinadas por autores
com diferentes trajetórias socioprofissionais, que muitas ve-
zes possuíam pensamentos médicos-farmacêuticos antagóni-
cos, tais publicações traduzem a heterogeneidade paradig-
mática da farmácia portuguesa do período.
A primeira farmacopeia impressa no país foi a
Pharmacopea
Lusitana
, redigida pelo monge agostiniano D. Caetano de
Santo António, em 1704 na cidade de Coimbra, onde seu
autor residia e ocupava o cargo de boticário no Mosteiro de
Santa Cruz. Alguns anos mais tarde, D. Caetano transfere-se
para Lisboa, para o Mosteiro de São Vicente de Fora, onde
publica outras duas edições reformuladas da sua farmaco-
peia, respetivamente nos anos de 1711 e 1725, sendo uma
versão póstuma foi ainda publicada no ano de 1754.
É significativo assinalar que a primeira farmacopeia, ainda
que não impressa oficialmente pela Coroa, é de autoria de
um boticário monástico. Sua importância reside no caráter
hegemónico que a farmácia conventual historicamente de-
tinha. Herdeira de uma tradição que tanto legitimava como
impelia as práticas médico-farmacêuticas como extensão do
trabalho eclesiástico, as boticas conventuais portuguesas de-
sempenharam um papel considerável na evolução do campo
farmacêutico nacional [2]. Pedro Sousa Dias assume que a ri-
queza e influência exercida no panorama farmacêutico por-
tuguês caracterizou a botica conventual até o século XVIII.A
trajetória proeminente desta botica ao longo da História, por
si só, justifica-a como objeto de estudo; todavia, o contraste
da sua opulência à fragilidade da farmácia laica portuguesa, à
época, fomenta ainda mais a sua singularidade [3].
Muitos mosteiros possuíam dentro de seus muros jardins e
boticas dedicadas ao atendimento tanto das suas necessidades
internas, ao abastecimento dos mosteiros que não possuíam
boticas, e ainda, ao serviço à população que os circundavam.
Os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, Dominicanos
e Jesuítas foram Ordens cuja atividade boticária conheceu
maior projeção, sendo os Carmelitas, Beneditinos e Orato-
rianos também reconhecidos nesse campo [3]. Sob a ban-
deira de tais instituições, as atividades desempenhadas pelos
monges boticários tornaram o seu legado indissociável da
própria história da farmácia portuguesa. Como exemplo,
basta lembrar que a primeira botica do país foi erguida no
Mosteiro de Alcobaça, e a primeira farmacopeia portuguesa
foi publicada pelo monge boticário crúzio em 1704.
Não obstante as numerosas publicações deste tipo no decur-
so do século XVIII, e apesar da posição precursora de um
clérigo na publicação das farmacopeias portuguesas, apenas
mais um representante da farmácia conventual assinou outra
farmacopeia durante o período. Uma das últimas publicadas
antes da farmacopeia oficial de Francisco Tavares, a
Phama-
copea Dogmatica Medico-Chimica, e Theorico Pratica
de autoria
do frei João de Jesus Maria (1716-1795) representa uma das
últimas reminiscências da tradição farmacêutica conventual
frente à ascensão da farmácia laica como categoria profissio-
nal hegemónica do ofício boticário. Dada sua importância
no contexto histórico farmacêutico português, o presente
texto tem como objetivo apresentar a trajetória profissional
do monge boticário João de Jesus Maria, assim como a im-
portância relegada em suas obras para com as plantas de uso
terapêutico naturais da colónia brasileira.
O frei e a Farmácia
Natural de Braga, frei Jesus Maria estudou Farmácia na Uni-
versidade de Coimbra, tendo sido aprovado no exame con-
dicional para a prática do ofício no ano de 1741. Três anos
depois, professa no Mosteiro de S. Miguel de Refojos os seus
votos monásticos, ingressando assim na Ordem de São Ben-
to. Por mais de 40 anos esteve à frente da botica existente no
Mosteiro de SantoTirso de RibaAve, local onde desenvolveu
a maior parte da sua trajetória profissional. Falece em 1795
no Mosteiro de Santo André de Rendufe [4].
Impressa em 1772 na cidade do Porto, a
Phamacopea Dog-
matica
traduz o esforço do autor em conceitualizar o ofício
boticário nas suas bases teóricas e práticas. Dividido em dois
tomos, o primeiro é dedicado a listar os principais achaques
e as composições farmacêuticas mais indicadas para seu tra-
tamento; o segundo concentra-se na descrição dos animais,
minerais e vegetais indicados para o uso boticário. Em suas
páginas observa-se a convergência da botica química, que
gradativamente se consolidava em Portugal, com o galenis-
mo, paradigma médico-farmacêutico ainda presente nas prá-
ticas boticárias lusas. Nos compostos oficinais descritos pelo
frei João de Jesus Maria estão vários elementos tradicionais
da medicina hipocrática galénica, como ácidos vinosos, óleos
diversos, clisteres e unguentos, assim como a existência de
sais enquanto compostos para o fabrico de mezinhas. O frei
também é autor da
Historia Pharmaceutica das Plantas Exóticas,
seus produtos, Naturalidades e Virtudes para Facilitar os Conheci-
mentos dosVegetais e Servir de Addição à Pharmacopea Dogmatica,
datado em 1777. Apesar de possuir todas as licenças do Tri-
bunal do Santo Ofício, o texto nunca chegou a ser publicado,
podendo ser hoje encontrado no Centro de Documentação
Farmacêutica da Ordem dos Farmacêuticos, sediado em
Coimbra [5].
No prólogo da
Phamacopea Dogmatica
, o monge boticário
transmite uma preocupação que apresentar-se-ia especial-
Medicina tropical e ambiente