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A n a i s d o I HM T
anos. O projeto de fundação de uma colónia agrícola autossus-
tentável, com base em teorias políticas e sociais progressistas,
se tornou realidade após a concessão de 199 hectares, em uma
região localizada a dez quilómetros da fronteira comFoz do Igua-
çu. Nesta região doAlto Paraná, Bertoni dedicou-se às pesquisas
sobre a fauna, a flora
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e sobre os nativos paraguaios, já que pró-
ximo à colónia havia uma reserva indígena da tribo Mbyá Guara-
ni. Em uma época em que o enciclopedismo começava a ceder
seu posto à especialização, Bertoni dedicou-se a estudar “desde a
frequência das chuvas até os costumes dos nativos do lugar. Fez
também incursões na linguística, levado pelo seu interesse nos
idiomas indígenas” [13: 46].
Foi também a partir deste momento que suas reflexões sobre
o que era e no que consistia uma civilização tornaram-se mais
profundas, levando-o a afirmar que “civilización (...) consiste en
el desarrollo de la agricultura como base de la vida material, de
la moral como base de la vida psíquica, de las artes como goce y
relación, y de la libertad y democracia como medios de dignifi-
cación individual y colectiva” [14].
Durante as quase quatro décadas em que viveu entre aArgentina
e o Paraguai, Bertoni não descuidou de manter contacto com
outros cientistas e com a produção dos maiores centros de pes-
quisa científica da Europa e da América.
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Foi em
Puerto Bertoni
que ele escreveu os seus mais de 500 livros, redigidos em seis
idiomas, inclusive, em guarani, divulgados através de sua editora,
a
Ex-Sylvis
, assim como uma série de artigos científicos remetidos
a várias revistas e bibliotecas científicas. Dentre seus trabalhos
mais importantes estão o Almanaque Agrícola, os artigos publi-
cados na Revista deAgronomia e nos
Analles Científicos Paraguayos
e, muito especialmente, a obra
La Civilización Guaraní
. O
Libro
II
desta obra intitula-se
La Medicina Guaraní
e foi dedicado aos
“jovens médicos paraguaios”, com a expectativa de “que alguns
dentre eles encar[assem] estes estudos como uma dupla missão,
científica e patriótica” [15: 143].
Sabe-se que na sede desta colónia, Bertoni montou uma bibliote-
ca commais de dezessete mil obras,
10
laboratórios experimentais
e, inclusive, uma gráfica e uma agência de correio, através da qual
despachava seus trabalhos para muitos países, e cuja difusão e lei-
tura garantiram-lhe convites para representar o Paraguai em vá-
rios congressos científicos internacionais, tais como o XX Con-
gresso Internacional deAmericanistas, de 1922, no Rio de Janei-
ro.
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Neste congresso, o naturalista suíço proferiu a conferência
El futuro de la raza americana en América Latina
,
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na qual criticou
enfaticamente o eurocentrismo e a crença de que as populações
indígenas encaminhavam-se para a sua extinção completa:
Muchos han supuesto que la raza indígena va hacia su extin-
ción completa; la idea de que ella virtualmente desaparezca ha
sido generalmente sostenida, y parece que aún lo sea, entre un
cierto público europeo. ¡Error profundo! La raza americana
vive,progresa,y tiene una gran misión,hasta ahora debidamente
completa, inmensa en el futuro.Vive con y en la raza europea.
La sangre que se mezcla, mejora, no desaparece (...) “¿Y dónde
estará el centro de la civilización? ¿En América,en Europa,en el
Oriente Asiático? ¡No! Porque el centro será el mundo. El espí-
ritu americano lleva hacia una mayor universalización.América
Latina está dando al mundo el hermoso‘ejemplo de la fusión de
la raza física en una gran raza social,unida a la analogía de los
componentes étnicos, a la recíproca estima, a un interes común,
y a nuevos y más vastos ideales.Algo similar sucederá sobre toda
la faz de la tierra, cuando todos los hombres hayan llegado a
un concepto claro de la solidaridad universal.Y en este grandioso
futuro hayan desaparecido todos los prejuicios de raza, como ya
han desaparecido en esta grande y espiritual nación. He dicho!
[14].
Em relação ao tema da extinção e à exclusão dos índios do fu-
turo da nação discutido no âmbito do XX ICA, Bertoni assim se
manifestou:
Preguntado con mucho interés, me vi obligado a dar certyas ex-
plicaciones al respecto del número probable, de la conservación
4 - Sobre a biografia de Guillermo Furlong, recomenda-se ver Gandía, E (1979),
Geoghegan,AR (1979) e Mayochi, EM (1979).
5 - Dentre seus biógrafos, destacamos: Schrembs P (1985), Baratti D, Candolfi
P (1999), Ramella L, Ramella-MiquelY (1985) e Buttura E, Niemeyer A (2012).
6 - Durante os anos de 1887 a 1893, já no Paraguai, Bertoni dedicou-se à implanta-
ção de herbários e ao registro de espécies botânicas, do que resultou a sua obra Las
plantas usuales del Paraguay y países limítrofes. Introducción, nomenclatura y dic-
cionário de los gêneros botânicos latino-guaraní, de 1914. Este estudo se encontra
refletido na Parte III (Etnografía, conocimiento), da obra La Civilización Guaraní,
de 1927, e mereceu uma edição especial, intitulada De la medicina guaraní: etno-
grafía sobre plantas medicinales, publicada em Córdoba (Argentina), pela Buena
Vista Editores, em 2008.
7 - Acredita-se que Moisés Bertoni tenha sido influenciado por um amigo francês
geógrafo e anarquista, Élissée Reclus, que recomendou a Venezuela e a região de
Misiones como zonas adequadas para a realização de seu projeto.A experiência das
missões jesuíticas, de fato, se assemelhava muito ao projeto de colónia idealizado
por Bertoni, que previa a instalação de uma colónia autossustentável na América do
Sul, em região favorável à agricultura e aos estudos de botânica.
8 - Entre 1889 e 1893, Bertoni realizou uma série de registros de géneros botânicos
do Paraguai.Ainda no ano de 1889, uma cheia do Rio Paraná acabou destruindo os
herbários – com espécies europeias e americanas – por ele cultivados. Um novo
herbário, que chegou a contar com 2500 espécies, seria construído, posteriormen-
te, em Puerto Bertoni, que seria parcialmente destruído em 1097, desta vez, por
insetos.
9 - Em Relación sucinta de un viaje, de 1924, além das referências aos estudos an-
tropológicos que vinham sendo realizados na Argentina, no México, na Guatemala
e no Equador, Bertoni revela conhecer a produção intelectual [antropológica] bra-
sileira, destacando os estudos publicados sobre etnologia nos Annaes da Biblioteca
Nacional e na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
10 - O acervo composto por mais de dezessete mil exemplares se encontra, atual-
mente, sob a custódia do Centro Cultural de La República - El Cabildo, em As-
sunção, Paraguai. Dentre os autores das obras que compunham a biblioteca de
Bertoni estão Jean de Lery, André Thevet, Guillerme Piso, Fernão Cardim, Ives
D’Evreux, Pero de Magalhães Gandavo, Couto de Magalhães,AlexanderVon Hum-
boldt, Johann Rudolf Rennger, Élisée Reclus, Silvio Romero, Francisco Adolfo de
Varnhagen,Telêmaco Borba,Afrânio Peixoto, Erland Nordenskioeld, Hermann von
Ihering e José Ingenieros.Ver mais em: Ramella L, RamellaY (1985). Biobliografía
de Moisés Santiago Bertoni – Flora Del Paraguay, Série Especial N. 2, Editions
des Conservatoire et Jardin Botaniques de la Ville de Genève, Missouri Botanical
Garden, Genebra, Suíça.
11 - A participação neste congresso, na condição de Delegado del Instituto Para-
guayo, implicou numa viagem que se estendeu de 11 de agosto a 26 de novembro
de 1922, sobre a qual Bertoni chegou a afirmar: “La ocasión fue excepcional, no
es menos evidente que en todo tiempo los intelectuales y la juventud paraguaya
sacarán gran provecho de um viaje al Brasil”. Bertoni MS (1924). Relación sucinta
de unaViaje de Estudios al Brasil, en ocasión de los Americanistas, del Centenario
de la Independencia del Brasil y de la Exposición Universal (del 11 de agosto al 26
de noviembre 1922). Ex Sylvis,Alto Paraná, Paraguay: 8.
12 - Em suas anotações sobre o XX ICA, Bertoni destacou algumas das conferên-
cias que assistiu: La Antropología en Brasil, por Ales Hrdlicka;Antigas fortalezas da
Bolívia, por Roberto Paravisini; Índios Canoeiros, por Rafael Arizaga e Henrique
Silva; Contribuición a la Arqueologia Sudamericana, por Franz Heger e La Lengua
General, el tupi e el guarani, por MiguelTenório D’Albuquerque.