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TRIPANOSSOMOSE HUMANA AMERICANA – A DOENÇA DE CHAGAS
SOFIA JÚDICE DA COSTA CORTES (S. CORTES) *
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LENEA MARIA DA GRAÇA CAMPINO (L. CAMPINO) *
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* Unidade de Ensino e Investigação de Parasitologia Médica, Instituto de Higiene e Medicina Tropical
(IHMT), Universidade Nova de Lisboa. Rua da Junqueira, 100, 1349-008 Lisboa, Portugal. Tel.:
213652600.
:
Lcampino@ihmt.unl.pt(L. Campino).
** Centro de Malária e Outras Doenças Tropicais (CMDT) / IHMT.
*** Departamento Ciências Biomédicas e Medicina, Universidade do Algarve. Estrada da Penha, 8005-
139 Faro, Portugal.
A doença de Chagas é uma das mais importantes
doenças tropicais negligenciadas e da pobreza no
continente americano. A história natural da
tripanossomose americana iniciou-se há milhões de
anos, como uma doença enzoótica de animais
selvagens, persistindo ainda, como tal, na região
amazónica. Quando o homem começou a invadir
biótopos naturais da infeção, esta foi-lhe sendo
transmitida acidentalmente, através de vetores
triatomíneos. Como resultado da eliminação das
florestas para a agricultura extensiva e pecuária na
América Latina, ao longo dos últimos 200-300
anos, e devido à deslocação de animais selvagens,
os vetores triatomíneos começaram a colonizar
áreas nas imediações e dentro das habitações
humanas. Estes insetos adaptaram-se então a este
novo nicho ecológico, alimentando-se de sangue
humano e de animais domésticos, passando a
infeção a comportar-se como zoonose. Em 1909, o
ilustre médico e investigador Carlos Chagas,
durante uma campanha de prevenção contra a
malária em Minas Gerais, no Brasil, foi o
protagonista de três grandes descobertas: a
identificação e descrição, pela primeira vez, de
uma nova doença humana - doença de Chagas -, o
seu vetor de transmissão, um triatomíneo
designado por “barbeiro” (
Triatoma
sp.) e o agente
etiológico, ao qual deu o nome de
Trypanosoma
cruzi
, em homenagem ao seu mestre, Oswaldo
Cruz.
T. cruzi
é um parasita flagelado da família
Trypanosomatidae
e género
Trypanosoma,
com
replicação predominantemente clonal. O parasita é
maioritariamente transmitido aos seres humanos
por via vetorial, através das fezes de triatomíneos
infetados, especialmente
Triatoma infestans
,
Rhodnius prolixus,
Panstrongylus megistus e T.
brasiliensis.
A segunda mais importante via de
transmissão é a transfusão sanguínea, de grande
relevância nos meios urbanos e em países não
endémicos, ou em casos de transplante de órgãos.
A transmissão também pode ocorrer por via oral,
transplacentária, ou pelo aleitamento materno
sendo, contudo, esta última menos frequente. Mais
rara ainda, a transmissão pode ocorrer por acidente
laboratorial. Os principais reservatórios são os
marsupiais, salientando-se o género
Didelphis.
A sequenciação do genoma de
T. cruzi,
em2005,
foi um marco importante nos estudos genéticos
relacionados com este parasita. Após revisão
taxonómica e com base em múltiplos marcadores
moleculares, estes parasitas foram agrupados em
seis unidades discretas de linhagem (
discrete
typing units
, DTU), designadas por TcI, TcII, TcIII,
TcIV, TcV e TcVI (Zingales
et al.
, 2009).
Evidências recentes apontam para associação
destas DTUs a nichos ecológicos distintos, com
consequentes implicações na epidemiologia e
patogenia da doença. Por exemplo, os parasitas da
linhagem TcI são responsáveis pela maioria dos
casos que ocorrem nas regiões endémicas da
Amazónia Brasileira, Venezuela, Colômbia e na
América Central, e manifestam-se geralmente
como doença aguda, lesões cardíacas e
meningoencefalite (Miles
et al.
, 2009).
Em geral, a doença de Chagas passa por uma
fase aguda, de curta duração, muitas vezes
assintomática, particularmente relevante nas
crianças, estimando-se que cause a morte em 5% a
10% dos casos pediátricos. Esta é a única fase em
que se observa elevada parasitemia e em que a
resposta é eficaz ao tratamento recomendado:
nifurtimox e benzonidazol. Nos casos não tratados,
após uma segunda fase (“fase indeterminada”), a
maioria dos doentes acaba por passar à fase
crónica, com parasitemia baixa e na qual o
diagnóstico é baseado na deteção de anticorpos
específicos. A doença crónica pode durar anos ou
décadas, levando ao envolvimento do sistema
nervoso, a insuficiência cardíaca, megacólon e