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Intodução

Um “problema ignorado e abandonado” foi assim que o

médico Orestes Diniz definiu a endemia de lepra que as-

solava o país no início da década de 1920 [1]. Ignorado

pelos médicos, que não possuíam incentivo material para

se envolverem no combate à doença, mas, acima de tudo,

um problema abandonado pelos governos, que teimavam

em não “proporcionar condições convenientes” àqueles

que se dispusessem a se dedicar a “tão difícil campo de

trabalho”. Os argumentos de Diniz mostram-se como

um caminho interessante para iniciar a reflexão deste

artigo, pois o seu objetivo será justamente pensar como

uma doença milenar, como a lepra, conseguiu conquis-

tar tamanha atenção dentro dos quadros da saúde pública

a partir da década de 1920, sendo considerada um ver-

dadeiro

flagelo

. Os argumentos que compuseram essa

transformação da lepra em risco eminente ao progresso

do país foram elaborados dentro de uma perspetiva me-

dicalizadora da doença. Conforme assinalou Torres, para

o caso da Colombia: “o pânico criado pelos médicos, teria

como objetivo principal medicalizar a enfermidade, posto

que até então, a lepra não era um assunto propriamente

médico” [2: 159]. É possível afirmar que, assim como na

Colombia, no Brasil a lepra também permaneceu durante

longo tempo sob os cuidados de comunidades religiosas e

organizações de caridade. Somente no contexto marcado

pela expansão da enfermidade, bem como pelo proces-

so de profissionalização da medicina - quando se tornou

importante delimitar e afirmar sua “autoridade cultural”

[3].

1

- é que os médicos passaram a considerar a lepra

como um tema que lhes dizia respeito e, com isso, a eli-

minar qualquer traço de legitimidade que outros grupos

pudessem ter para se referir à doença.

É importante destacar que analisar a maneira como os

médicos construíram um conhecimento sobre a lepra -

transmissão, contagiosidade, isolamento dos doentes e

tratamentos da enfermidade - contribui para compreen-

der a forma como a doença acabou por configurar-se

como resultado de negociações sociais dentro da própria

comunidade científica, e, além dela, no meio social. Pois,

não se pode pensar que a sociedade submete-se ao po-

der medicalizador de forma passiva, ao contrário, como

destacou Torres (2002:30), “a medicalização não é sim-

plesmente um processo de controle social que ocorre de

cima como mera imposição da profissão médica, mas com

frequência, se produz a partir de demandas dos serviços

médicos por parte do público” [2:30]. Sendo assim, par-

tindo do entendimento de que a carga de significado que

é atribuída a uma doença como a lepra determinava as

práticas profiláticas que seriam utilizadas para controlá-

-la, neste artigo, procuro acompanhar os diferentes sig-

nificados que foram atribuídos à lepra ao longo de, pelo

menos, duas décadas do século XX (1920-1940). Chamo

de “atribuição de significado” uma das facetas do proces-

so que Charles Rosenberg conceituou como

framing

[4],

2

na qual o pensamento e a prática médica contribuem

para a construção social da enfermidade, tanto através da

aplicação de esquemas conceituais que a classificam como

realidade biológica, quanto por meio de um conjunto de

esquemas interpretativos que, depois de negociados, re-

sultam em uma determinada compreensão geral acerca da

doença. Especificamente sobre a lepra, em minhas pes-

quisas sobre sua historicidade,

3

identifiquei dois significa-

dos diferentes para esta doença, os quais resultaram em

práticas profiláticas muito distintas para seu controle. O

primeiro momento, objeto do presente artigo, remonta

ao início do século XX, quando os leprólogos empenha-

ram-se em caracterizar a lepra como um

flagelo nacional

e

em estabelecer medidas para seu controle. Já o segundo

momento, a partir da década de 1940, os médicos tive-

ram que reelaborar o significado da doença, graças à des-

coberta das sulfas e ao maior conhecimento acerca de sua

etiologia [5]

4

.

Mostrarei, portanto, que a argumentação que caracteri-

zara a lepra como um

flagelo

e, em grande medida, fora

responsável pela implantação de uma grandiosa estrutura

para seu combate no Brasil, destacadamente pelo isola-

mento compulsório, manteve-se sem grandes questiona-

mentos até meados da década de 1940.

O papel do Estado

no combate à lepra no Brasil

No limiar do século XX, teve início no Brasil o proces-

so de constituição do que hoje chamamos saúde pública.

Para entender como a saúde entrou na agenda do poder

público, tornando-se um “bem” coletivo, é preciso acom-

panhar as transformações sociais, culturais e políticas

pelas quais passava o país naquele momento. Sobretudo

o facto de que, a partir dos anos de 1920, ter ganhado

força a perspetiva de romper com as teorias baseadas no

determinismo biológico que vislumbravam um futuro

fracassado para o país, em virtude de sua mistura racial.

Em substituição a estas teorias, adotou-se um novo argu-

mento mais otimista, segundo o qual o saneamento do

país, libertá-lo-ia das grandes endemias e aperfeiçoaria o

homem do sertão, permitindo à nação civilizar-se

5

e atin-

gir o progresso. De acordo com Schwarcz, “é como se, de

repente, fosse preciso acreditar no país, transformar em

certezas dúvidas e inquietações” [6:217].

As condições de saneamento do Brasil evidenciavam um

quadro de precariedade, com cidades constituídas por

ruas estreitas, habitações coletivas, lixo acumulado e com

a maioria da população susceptível às doenças transmis-

síveis. Já o mundo rural era considerado o

habitat

das en-

demias e de uma população castigada pelas enfermida-

Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical