Table of Contents Table of Contents
Previous Page  75 / 210 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 75 / 210 Next Page
Page Background

75

A n a i s d o I HM T

des e pela ignorância. A criação do Instituto de Patologia

Experimental de Manguinhos para a pesquisa biomédica,

no Rio de Janeiro, em 1900, marcou o alvorecer de uma

nova perspetiva de saúde no Brasil, pois contribuiu para

inserir as questões de saneamento na agenda do poder

público, convencendo-o de que os problemas sanitários

representavam um grande desafio à estrutura económica

do país. Inicialmente, os esforços do Instituto de Mangui-

nhos voltaram-se para o combate da epidemia de febre

amarela no Rio de Janeiro em 1903, quando o prefeito

Rodrigues Alves nomeou Oswaldo Cruz

6

como Diretor

Geral de Saúde Pública. Este período é reconhecido na

historiografia como a primeira fase do “movimento sani-

tarista” [7], que pode ser definido como um movimento

pela reforma da saúde pública, empreendido por um gru-

po de médicos que criaram um discurso segundo o qual

o Brasil era um país doente, “um imenso hospital” e, para

que se alcançasse o progresso, era necessário solucionar

seu principal problema: a saúde da população. Ao carac-

terizar o país pela omnipresença das doenças endémicas

e pela ausência do poder público, estes médicos produzi-

ram um intenso debate mobilizando a sociedade. Por isso,

é possível afirmar que a ciência médica “assumiu a partir

da primeira década da República uma função preventi-

va e social, em detrimento do papel predominantemente

curativo que desempenhava anteriormente” [8:91-107].A

disposição de alguns profissionais da medicina em tomar

parte na empreitada de “civilizar” o país pode ser pensada,

pelo menos, sob duas perspetivas básicas: a primeira refe-

re-se à oportunidade de colocar a saúde definitivamente

na agenda do Estado, fazendo com que ele a assumisse

como sua reponsabilidade, haja vista o argumento de que

as doenças contagiosas promoviam uma espécie de “inter-

dependência social” [11]. Despertou-se para o facto de

que um indivíduo doente seria uma ameaça aos seus se-

melhantes e, a partir daí, chegou-se à conclusão de que as

condições de saúde de uma pessoa não era um problema

privado, individual, mas, ao contrário, era um problema

do mundo público. Já a segunda perspetiva, diz respei-

to ao processo de profissionalização da categoria médica,

especialmente dos sanitaristas, que precisavam mostrar a

relevância do cuidado preventivo com a saúde da popu-

lação e, consequentemente, a importância que possuíam

para a concretização destas ações preventivas [9].

O movimento sanitarista pode, portanto, segundo Ho-

chman, ser dividido em duas fases. O primeiro período

corresponde à primeira década do século XX e teve como

característica principal a preocupação com o saneamen-

to urbano da cidade do Rio de Janeiro, a prioridade era

o combate às três principais doenças que tornavam a ci-

dade reconhecida como ‘pestilenta’: febre amarela, cóle-

ra e peste. O segundo período, entre 1910 e 1920, foi

marcado pela preocupação com o saneamento rural, par-

ticularmente pretendia-se combater três grandes ende-

mias rurais: ancilostomíase, malária e doença de Chagas

[7:93].

Assim, no caso específico da lepra, objeto desse artigo,

observei que apesar de a enfermidade ganhar espaço nos

congressos médicos no Brasil e na América Latina, - se-

guindo uma tendência mundial de luta por uma legisla-

ção sanitária para a profilaxia da doença desde o final do

século XIX - seu controle não entrou nas prioridades do

movimento sanitarista. Entretanto, o facto do movimento

ter transformado a saúde em responsabilidade do poder

público, iria criar as condições para que a lepra, mesmo

não sendo alvo específico do discurso sanitarista, fosse

transformada em “problema nacional”. Um processo que

ocorreu “graças ao empenho dos leprólogos em descrevê-

-la estatística e geograficamente” [10: 226]. Não é obje-

tivo aqui acompanhar detalhadamente o longo processo

que resultou na transformação da lepra em

flagelo

nacio-

nal, mas apresentar alguns dos principais argumentos que

compuseram o discurso em torno da temática.

Na abertura deste artigo utilizei uma frase do médico

Orestes Diniz, na qual ele descreve suas impressões sobre

o combate à lepra no Brasil nos idos de 1920, quando

ainda estagiava em um Dispensário na cidade de Belo Ho-

rizonte, Minas Gerais. Minha intenção foi fazer com que

o leitor observasse a maneira como ele delineou o quadro

geral da endemia no estado, que poderia ser descrito ba-

sicamente da mesma forma nas demais regiões brasileiras,

qual seja um problema “grave” que contava com a indife-

rença do poder público. Com o objetivo de romper com

esta apatia em relação à incidência da doença, em 1922,

foi realizada no Rio de Janeiro a “Primeira Conferência

Pan-americana de Lepra”. Neste evento, que contou com

representantes de vários países do continente, foram deli-

beradas as primeiras iniciativas com o intuito de controlar

a endemia de lepra na região. No relatório de conclusão

da conferência, os leprólogos decidiram que, a partir da-

1 - Paul Starr define “autoridade cultural” como o poder social que um determinado

grupo possui, com base na probabilidade de que suas definições da realidade e seus

juízos de significado e valor sejam tomados como válidos e verdadeiros.

2 - De acordo com Charles Rosenberg, o

framing

envolve a premissa de que a doen-

ça é emoldurada por certos esquemas interpretativos e classificatórios, condizentes

com contextos histórico-sociais específicos. O autor explica que, ao mesmo tempo

em que é emoldurada, a doença também produz ações que a tornam um

frame

, isto

é, uma moldura para diversas situações da vida social. No presente artigo, o con-

ceito irá se referir a ideia de construção e reconstrução de significados para lepra.

3 - As pesquisas foram realizadas entre 2008 e 2012 para desenvolvimento da tese de

doutorado intitulada: Colóônia Santa Izabel:A Lepra e o Isolamento em Minas Gerais

(1920-1960), defendida na Universidade Federal Fluminense, em março de 2012.

4 - Do ponto de vista clínico, a lepra fora classificada em tipos: lepromatoso, in-

característico ou indiferenciado e tuberculóide. Mas a grande novidade em relação

aos conhecimentos sobre a etiologia da lepra foi que o contágio não se dava em

todas as variedades da doença, além disto, as sulfas trouxeram a cura para alguns

casos.

5 - O termo “civilização” tinha diversos significados naquele momento, mas espe-

cificamente para a medicina sanitarista, queria dizer levar preceitos de higiene e

combater as endemias e epidemias que assolavam o interior brasileiro.

6 - Destacado médico bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro. Foi

pioneiro no estudo das moléstias tropicais e da medicina experimental no Brasil,

fundador do Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos.