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A n a i s d o I HM T
o projeto de colonização portuguesa está intimamente as-
sociado ao protagonismo dos cientistas portugueses e ao
processo de reconhecimento e afirmação da sua autoridade
na cena nacional e internacional [11]. O protagonismo da
Escola de Medicina Tropical, bem como o dos indivíduos,
oscilou durante os diferentes regimes políticos: monarquia
constitucional, Primeira República e Estado Novo, abrangi-
dos pelo período analisado pelo autor.
Assim, este artigo, ao tomar como ponto de partida os tra-
balhos preconizados, na sequência do contrato de constru-
ção da barragem de Cabora Bassa (1967-1974), inscreve-se
no período “imperial” e, segundo Pedro Abranches, num
subperíodo que se segue ao “declínio”, durante “uma expe-
riência frustrada” da história do IHMT e no “fim da era colo-
nial”. Porém, a hipótese que pretendo aqui levantar é que as
evidências que vou apresentar iniciam, ou abrem caminho,
para uma das atuais “linhas transversais” de investigação do
Instituto de Higiene e MedicinaTropical, nomeadamente as
“Doenças Emergentes e Alterações Ambientais” [4].
A minha hipótese é, concretamente, que o trabalho preconi-
zado pelos cientistas portugueses, em consequência das al-
terações ecológicas provocadas pela albufeira da barragem,
terá de alguma forma aberto o caminho para a introdução
da Medicina Ambiental em Portugal e, assim, o estudo das
doenças resultantes das alterações provocadas no ambiente
pela ação do Homem.
A Medicina Ambiental é um ramo da Saúde Ambiental cuja
atividade visa prevenir ou proteger contra fatores que pos-
sam prejudicar a saúde das pessoas nos lugares onde elas
trabalham ou vivem, nomeadamente quando são introdu-
zidas alterações significativas no ambiente, como é o caso
da construção de uma albufeira com a dimensão de Cabora
Bassa. O termo Medicina Ambiental foi usado pelo Exército
dos Estados Unidos pelo menos desde 1961 [15]. Posterior-
mente, foi fundada a
American Academy of Environmental Me-
dicine
(AAEM) em 1965 por um grupo de clínicos de várias
especialidades que se juntaram e formaram uma sociedade
médica que evoluiu para aquela academia. Hoje é uma orga-
nização internacional de médicos especializados em Medi-
cina Ambiental. [15]
O caso que vos apresento corrobora ainda o que Ricardo
Castro [11] demonstra e Martin Shapiro [12] já tinha apon-
tado: o comportamento das autoridades e dos cientistas
portugueses, no que se refere à política colonial, incluindo
a saúde, revela que o país se sentiu “sistematicamente na
obrigação de reagir às acusações provenientes da comuni-
dade internacional.” [11:6] E, se isto é verdade no período
que precede os anos 60 do século XX, mais verdade se torna
nessa década em que as Nações Unidas, com as resoluções
1314, 1514 e 2107 tornaram o colonialismo português
“fuera de la ley” como Cueto Rodríguez [16:2720] sublinha,
não obstante Portugal ter seguido as recomendações das
Nações Unidas, nomeadamente no que toca ao desenvolvi-
mento económico e social das colónias.
2.
Planos integrados de aproveitamento
das bacias hidrográficas
dos rios africanos
Ao estudar a eletrificação nas colónias africanas portuguesas,
constatei que os planos de produção hidroelétrica se inscre-
viam, geralmente, em planos mais vastos de aproveitamento
das bacias hidrográficas.
Kate Showers aponta os anos 1930, como o tempo dos planos
de aproveitamento das bacias dos rios africanos [17]. Porém,
em Portugal, eles surgiram na década anterior, mais precisa-
mente em 1925, com os estudos que o engenheiro Trigo de
Morais produziu na sequência da sua viagem a Moçambique
para analisar os rios Búzi e Limpopo. No entanto, só após a
Segunda Guerra Mundial esses planos ganharam relevo, no
contexto de uma política económica de desenvolvimento de
África, que visava coadjuvar a recuperação económica da Eu-
ropa devastada pela guerra.
Assim, é no contexto internacional da recuperação da Euro-
pa, do Plano Marshall e da Guerra Fria que se devem inscre-
ver os projetos de aproveitamento das bacias hidrográficas
dos rios africanos nas colónias portuguesas. E, no contexto
nacional, no regime ditatorial de Salazar que fazia um inves-
timento tardio na ocupação material, económica e social das
colónias. Esta política teria sido iniciada por Marcelo Cae-
tano, enquanto Ministro das Colónias, em 1945, “turning
towards a modernising and technocratic discourse on Portu-
guese African development that would deepen in the 1950s
and 1960s”, segundo Cláudia Castelo [18:67].
Nesse contexto, a doutrina seguida sobre o aproveitamen-
to das bacias hidrográficas foi apresentada pelo engenheiro
Trigo de Morais, na comunicação “A água na Valorização do
Ultramar” proferida em 1951, no Instituto Superior Técni-
co, e mais tarde invocada e desenvolvida pelo engenheiro
Bettencourt Moreno, na comunicação “Os Aproveitamentos
Hídricos na Valorização do Ultramar” proferida em 1969,
XIV Curso de Estudos Ultramarinos da Mocidade Portugue-
sa. A tese defendia que as colónias africanas, nomeadamente
Angola e Moçambique, possuíam recursos hídricos extraor-
dinários, cujo aproveitamento permitia um grande desen-
volvimento económico do país baseado no fornecimento de
água para a rega na agricultura e para a produção de energia
elétrica barata, recurso fundamental para apoiar o desenvol-
vimento tanto da industrialização como do consumo domés-
tico. Estes fatores, por sua vez, atrairiam a população branca
da metrópole para as colónias africanas, que se consideravam
subpovoadas e, por isso, impedidas de darem os rendimentos
possíveis [19].
Os projetos para o aproveitamento das bacias hidrográfi-
cas eram planos integrados no sentido em que era visado o
aproveitamento da totalidade da bacia e não apenas o uso
das águas dos rios. Estas seriam utilizadas na irrigação das
áreas adjacentes onde se realizaria a agricultura, a pecuária
e a silvicultura. A água serviria ainda para produzir eletrici-