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A n a i s d o I HM T
A responsabilidade que impende sobre Portugal quanto à
qualidade dos trabalhos a executar é óbvia e aparece re-
forçada pelo facto de ter sido manifestado por vários cien-
tistas estrangeiros o interesse em executar parte das tarefas
para o que trariam até contributo financeiro.
A dimensão dos problemas que vão surgir e a dificuldade
em encará-los constitui um desafio aos cientistas portu-
gueses (…). [1:3]
No mesmo texto reconhece-se a necessidade de elaborar
um programa de trabalhos rigoroso, assim como o mérito
do trabalho elaborado anteriormente pelo GPZ, nomeada-
mente as produções de 1965. Assume-se, como quadro de
referência do tipo de problemas a abordar, a obra
Man-made
lakes: planning and development
, FAO, 1969 e, identificam-
-se “os campos de investigação e de temas a considerar
pelas equipas” [1:20]. Por um lado, visava-se a aquisição
de “conhecimentos que se [tornariam] inacessíveis após a
inundação da albufeira de Cabora Bassa” [1:21], através da
inventariação de dados sobre Geologia e Geomorfologia,
Botânica, Zoologia, Pedologia e Agropedologia, Pré-His-
tória e Arqueologia, Problemas Humanos: Antropologia
e Geografia Humana, Saúde e Nutrição, Hidrobiologia e
Pescas. Por outro lado, estudar-se-iam as alterações “pre-
visíveis em consequência da inundação” nos reinos mineral
e no relevo, vegetal, animal, humano, na saúde pública, no
domínio hidrológico e das pescas e na climatologia. Nes-
te último, proceder-se-ia ainda à “prevenção de alterações
que se preveem nocivas, tais como: diminuição de terras
agricultáveis, excessiva siltação, infestação de plantas noci-
vas, excessiva produção de hidrogénio sulfurado, aumento
de insetos e caracóis transmissores de doenças (malária,
bilharsia, etc.), diminuição de piscosidade no estuário, dis-
persão de parasitas humanos e animais” e ao “estímulo de
alterações que se preveem benéficas como: produção de
plantas aquáticas para alimentação, piscosidade da albufei-
ra, piscosidade a jusante da barragem, navegabilidade do
rio.” [1: 21-22]
Assim, os estudos feitos seriam não apenas para conhecer,
mas para poder intervir, nomeadamente na operação “Arca
de Noé” (transferência de animais da área a inundar para ou-
tros locais), sendo sabido que a deslocação de mamíferos,
acompanhada da mosca tsé-tsé, podia provocar a expansão
da tripanossomíase bovina; a transferência de roedores po-
dia aumentar o risco da peste bubónica; e a proliferação de
várias espécies de mosquitos a encefalomielite e a filariose;
enfim que a variação do “meio ecológico” poderia “implicar
dificuldades de adaptação a certos animais terrestres e afetar
as condições de vida e a ação no equilíbrio biológico do meio
aquático dos crocodilos e hipopótamos, etc.” [1:10-11]
Por sua vez, a equipa revelava possuir também consciência
dos fenómenos inerentes à deslocação forçada das popula-
ções indígenas das zonas ribeirinhas, os quais vieram a ser
designados por Cernea [23] como “desapropriados ambien-
tais”, quando afirmava que “os estudos servindo de base aos
planos de transferência de populações” deveriam elucidar
sobre as “suas características gerais”, “os seus modos de vida,
as suas necessidades ou ambições.” E que a subsequente “in-
tegração antropológica” teria que ser circunscrita aos aspetos
que melhor afirmassem a “continuidade aos valores funda-
mentais inerentes a cada uma das etnias.” [1:13]
Por outro lado, a Comissão reconhecia que “as reações hu-
manas perante uma alteração que, afetando ainda que tran-
sitoriamente modos de vida e não obstante todo o cuidado
posto em diminuir os seus efeitos” eram “difíceis de prever” e
capazes de provocar “inevitável desequilíbrio nos indivíduos
e nas sociedades em causa” [1:15].
Na verdade, o enchimento da albufeira de Cabora Bassa iria
fazer deslocar aproximadamente 24000 indivíduos. Não obs-
tante o contrato para a realização da obra só ter sido assinado
em 1969, a Brigada de Estudos Económico-Sociais da Missão
de Fomento e Povoamento do Vale do Zambeze, começou
a trabalhar sobre este problema em 1967, tomando como
referência os procedimentos das autoridades rodesianas le-
vados a cabo aquando da barragem de Kariba e das america-
nas no Vale do Tenessee. As autoridades portuguesas conta-
vam até com a colaboração do sociólogo americanoW. Rex
Crawford e da embaixada dos Estados Unidos em Lisboa
para o fornecimento de material audiovisual, “cuja projeção
teria apreciável efeito psicológico (…) dado (…) acentuar
que não eram só os africanos que tinham necessidade de
ser desalojados por motivo de grandes empreendimentos.”
[24:3] Previa-se que em 1973 se tivesse reinstalado a grande
maioria da população a deslocar, a uma média de 8000 por
ano, sendo o ano de 1974 dedicado aos “casos difíceis, carac-
terística que não é exclusiva da recetividade das populações
mas também de fatores ecológicos (dificuldades de terras, de
águas, etc.).” [25:2]
A equipa da “Comissão Orientadora da Investigação Cientí-
fica na área a inundar pela albufeira de Cabora Bassa” tinha
bem consciência da envergadura do processo de deslocação
das populações desalojadas em consequência do enchimento
da albufeira, ao afirmar que implicavam “traumatismos físi-
cos e morais de considerável importância” por “rarefação do
ambiente mítico positivo” [1:16].
Por um lado, esta consciência conjugava-se com a proposta
da Brigada de Reordenamento de constituir equipas poliva-
lentes de trabalho de acompanhamento das populações com
um técnico de desenvolvimento comunitário (ou promoção
social), chefe de setor, um ou dois técnicos adjuntos, um mé-
dico, chefe de setor, um médico veterinário, chefe de setor,
um engenheiro agrónomo, chefe de setor, um ou dois assis-
tentes sociais, coadjuvados pelos correspondentes técnicos
de formação média. Estas equipas seriam ainda acompanha-
das por técnicos de formação universitária dos quadros da
Missão do Zambeze: engenheiros civis, economistas e geólo-
gos [24]. Essas equipas visavam: a integração dos agriculto-
res autóctones ainda em regime de subsistência na economia