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Introdução

A construção da barragem de Cabora Bassa (designação uti-

lizada durante o período colonial português) fazia parte do

plano de desenvolvimento integrado do rio Zambeze abran-

gendo 137000 km

2

. O plano visava o aproveitamento dos

recursos naturais da região, o progresso social e económico

das populações e o adensamento da ocupação humana de

extensas áreas, consideradas fracamente povoadas. A criação

da albufeira de Cabora Bassa levantou desde logo questões

ecológicas importantes pois desenvolvia-se ao longo de 250

km, com uma área de 2700 km

2

. Para tratar essas questões,

na Junta de Investigação do Ultramar, foi criada a “Comissão

Orientadora da Investigação Científica” na área da albufei-

ra [1]. No seu trabalho, a Comissão adotou, como quadro

de referência, a publicação da Food and Agriculture Orga-

nization of the United Natios (FAO) de 1969, “Man-made

lakes: planning and development” [2], e visou dois objetivos:

a aquisição de conhecimentos impossíveis de obter após a

inundação da área, e a previsão de alterações ecológicas em

resultado da criação da albufeira, que incluía a “Saúde e Nu-

trição”. Neste campo de investigação, visava identificar os

fatores que pudessem interferir no quadro da saúde públi-

ca nos trópicos, como sejam: “a deslocação de mamíferos”

acompanhados da deslocação simultânea da mosca tsé-tsé, o

que poderia provocar a expansão da tripanosomíase bovina;

“a transferência de roedores” que podiam ser veículo trans-

missor da peste bubónica; “a proliferação de várias espécies

de mosquitos”, como os vetores da encefalomielite e filario-

se, favorecida pelas condições de abrigo das respetivas larvas

pelas massas flutuantes de plantas na albufeira [1:10].

A Comissão visava, assim, na rubrica “Saúde e Nutrição”, a

“saúde pública (…) no campo das endemias prevalecentes

e da nutrição” com o objetivo de “prever medidas a tomar

anteriormente à reinstalação das populações”, assim como as

que deveriam ser consideradas no decurso e depois daquela

ação [1:17].

Neste artigo analisa-se o trabalho da Comissão no âmbito

da saúde pública, visando-se inscrevê-lo na tradição da me-

dicina tropical portuguesa, identificando continuidades e

ruturas, ao mesmo tempo que pontuaremos as influências

exteriores, nomeadamente a adoção da perspetiva ecológica

na abordagem dos problemas estudados.

Assim, o presente trabalho desenvolve-se em três pontos.

No primeiro, situa-se este artigo no contexto da “História da

Medicina Tropical Portuguesa”; seguidamente, contextuali-

zam-se os dados analisados no âmbito dos “Planos integrados

de aproveitamento das bacias hidrográficas dos rios africa-

nos”; no terceiro ponto, “Lagos artificiais – o caso de Cabora

Bassa”, analisam-se os surpreendentes “Estudos do impacto

ecológico de Cabora Bassa”, por referência aos “Man-made

lakes: planning and development” [2], salientando-se os da-

dos dignos de nota para a sustentação da hipótese aqui avan-

çada.

1.

História da MedicinaTropical

portuguesa

A História da medicina portuguesa nos trópicos pode ser di-

vidida em três grandes períodos: o primeiro teve início com

os Descobrimentos e decorreu até ao século XIX; o segundo

iniciou-se, no fim do séc. XIX, com a instituição da Medicina

Tropical como especialidade autónoma, que teve um perío-

do colonial até 1974; e um terceiro que decorreu daí até à

atualidade. Cada um destes três grandes períodos pode, po-

rém, ser subdividido. Segundo Coelho doVale [3], poderiam

ser indicados, no primeiro, quatro subperíodos distintos: o

das Descobertas, o do Império Oriental, o da Formação do

Brasil e o Contemporâneo. Em todos eles, segundo aquele

autor, a “assistência ao indígena no ultramar português” se

revelou como “uma das mais altas preocupações da política

ultramarina portuguesa” [3: 2551].

A historiografia existente tem-se debruçado fundamental-

mente sobre os dois primeiros períodos e no segundo, prin-

cipalmente até 1935, nomeadamente com os trabalhos de

Cristiana Bastos [5,7] e Renilda Barreto [5], Philip Havick

[6], Isabel Amaral [8], Ana Rita Lobo [9], Pedro Ribeiro [10]

e Ricardo Castro [11]. Entre as exceções a esta regra encon-

tram-se a obra de Pedro Abranches [4]

O Instituto de Higiene e

MedicinaTropical. Um Século de História 1902-2002

e de Martin

Shapiro,

Medicine in the Service of Colonialism:Medical care in Por-

tuguese Africa, 1885-1974

[12]. O 2º Encontro Luso-Brasileiro

de História da MedicinaTropical marcou em 2015 a diferença,

propondo no seu racional seguir-se uma narrativa institucional

mais abrangente e alargada ao período pós Segunda Guerra

Mundial. São disso exemplo as comunicações apresentadas

por Luís Costa,

Da Poluição Local à Higienização da Colónia: a

Lepra entre um Mal Social e a Medicina Tropical (Guiné portuguesa

1951-1974),

Isabel Amaral,

Impacto da II Guerra Mundial na Me-

dicinaTropical Portuguesa – O Caso Aldo Castellani (1946-1972)

e

Philip Havik,

Da Intervenção Colonial até à Cooperação Internacio-

nal:a Evolução Histórica do IHMT desde 1945

. Philip Havik subli-

nhou mesmo a necessidade de preencher uma lacuna na his-

toriografia nacional, dado que a historiografia do IHMT ainda

se encontra numa fase inicial e propôs uma comunicação que

pretendia “preencher algumas lacunas no que diz respeito à sua

evolução desde a Segunda Guerra Mundial”, nomeadamente

o “papel de agente activo no quadro do controle e eradicação

[sic] de doenças tropicais no espaço do império colonial para

uma instituição vocacionada para a cooperação no âmbito da

saúde pública internacional.” [13]

De um modo geral, as abordagens historiográficas anterio-

res à Segunda Guerra Mundial inscrevem-se nas relações

entre ciência e política, quer o objeto de estudo analisado

seja as políticas sanitárias e de saúde pública, as instituições,

os atores e as suas práticas, ou as doenças e a sua epidemio-

logia, ou ainda a relação entre estas variáveis. Na verdade,

a medicina tropical foi considerada uma das “ferramentas

do império”[14] e, como Ricardo Castro bem demonstra,

Medicina tropical e ambiente