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A n a i s d o I HM T

Assim, Laveran e Nattan-Larrier ponderaram:

O estudo da Leishmania americana é muito recente para

que possamos concluir sobre as diferenças morfológicas

existentes entre essa Leishmania e a L. tropica, mas as di-

ferenças que existem do ponto de vista clínico, entre essa

leishmaniose (bouba ou espundia) e o botão do Oriente

são inegavelmente evidentes; então mesmo que não pos-

samos observar nenhuma diferença morfológica apreciável

entre a Leishmania americana e a L. tropica, é necessário

distinguir estes parasitas assim como se distingue a L. Do-

novani da L. tropica, mesmo que essas duas leishmanias

apresentem do ponto de vista morfológico grande seme-

lhança [15].

Mesmo com as pesquisas em curso invalidando os sinais dife-

renciais do protozoário americano, conforme proposto por

Laveran e Nattan-Larrier, foi continuada a defesa da distin-

ção entre essas leishmanias em razão dos diferentes quadros

clínicos. É interessante observar que o mesmo argumento

utilizado para diferenciar a

L. donovani

da

L. tropica

foi ex-

trapolado para a

Leishmania americana

, ou seja, a defesa da

individualização do patógeno devido a seus distintos qua-

dros e cursos clínicos. Por fim, os pesquisadores da

Société de

Pathologie Exotique

propuseram abandonar de vez as antigas

denominações e designar como leishmaniose americana e

Leishmania tropica var. americana

, respectivamente, a doença e

o protozoário encontrados na região sul-americana [15].

A partir desse ano, Alphonse Laveran entraria de vez para os

debates relacionados à existência de modalidades de leish-

manioses específicas da América do sul. Nos seus artigos, o

presidente da

Société de Pathologie Exotique

passou a defender

a dupla ideia de identidade entre as diferentes manifestações

de leishmaniose encontradas na região sul-americana e de sua

individualização quando comparadas aos quadros do botão do

Oriente e calazar, ao mesmo tempo em que reclamava para si

e para Natan-Larrier o mérito de terem identificado um pro-

tozoário, muito próximo a

L. tropica

, que seria o responsável

pela existência da leishmaniose na região americana.

A ampla visibilidade do

BSPE

nos principais fóruns médicos

europeus e americanos garantiu a presença da

Leishmania tro-

pica var. americana

nos artigos publicados

a posteriori

sobre

essa temática no periódico francês. Contudo, como observa-

do acima, os estudos realizados sobre essa moléstia por Lave-

ran e Nattan-Larrier partiam exclusivamente das amostras e

materiais enviados por Escomel, do Peru à França e, de toda

forma, esses pesquisadores ainda não haviam encontrado ne-

nhum sinal de distinção morfológica que servisse de parâme-

tro para a particularização desse protozoário. Nesse momen-

to, os trabalhos executados por Gaspar Vianna no Brasil não

entraram no debate internacional sobre o agente etiológico

dessa moléstia. Isso só viria a ocorrer a partir de 1915, em

outro artigo de Laveran, como demonstrarei adiante.

No Rio de Janeiro, em 1914, GasparVianna publicou um novo

artigo sobre a

Leishmania braziliensis,

dessa vez,

no periódico

científico

Memórias do IOC

. Nesta oportunidade, o cientista

de Manguinhos dissertou sobre novas observações que havia

realizado durante sua estadia em São Paulo, nas quais teve “a

oportunidade de ver animais [cachorros] infetados esponta-

neamente por

Leishmania braziliensis

”, estudar o seu compor-

tamento e estabelecer comparações com o

T. Cruzi

destacan-

do, sobretudo, a mobilidade dessa espécie de

Leishmania

no

organismo do hospedeiro final, o que o levou a acreditar “na

evolução do parasita a distância do ponto ulcerado e mais, em

lesões vasculares por ele produzidas” [16].

Esse foi, porém, o último artigo escrito sobre a

L.braziliensis

por

esse cientista. Nesse mesmo ano, GasparVianna morreu aos 29

anos, tragicamente, vítima de tuberculose que, acidentalmente,

havia contraído durante a realização de uma autópsia.Nessa oca-

sião, o líquido presente, sob pressão, na caixa torácica do corpo

examinado jorrou sobre seu rosto e sua boca que estavam sem

proteções apropriadas. Poucos dias após esse acidente, aparece-

ram os primeiros sinais de uma tuberculose aguda e, em menos

de dois meses, GasparVianna foi a óbito, dando fim às suas pes-

quisas sobre as leishmanioses e a

L.braziliensis

.

No ano seguinte, Alphonse Laveran escreveu um extenso

artigo no

BSPE

intitulado

“Leishmaniose américaine de peul et

muqueuses”

. Nessa oportunidade,

ao realizar um longo levan-

tamento bibliográfico sobre o que estava sendo produzido

acerca destas modalidades americanas de leishmaniose, esse

pesquisador buscou dialogar não só com os trabalhos reali-

zados pelos centros de pesquisa europeus, mas também com

aqueles produzidos por autores sul-americanos, o que o le-

vou a abordar, pela primeira vez, as conclusões de Gaspar

Vianna sobre a

Leishmania braziliensis

nos seus trabalhos.

Defendendo, novamente, a dupla ideia de identidade entre as

diferentes manifestações de leishmaniose encontradas na região

sul-americana e de sua individualização quando comparadas aos

quadros clínicos do botão do Oriente,Alphonse Laveran iniciou

seu artigo mapeando as suas áreas endémicas e dissertando so-

bre suas relações de identidade nesse continente:

Não há dúvidas que a leishmaniose americana seja fre-

quentemente englobada como outras doenças sob os nomes

de buba ou bouba, de botão da Bahia e úlcera de Bauru no

Brasil; sob o nome de uta e espundia no Peru; de pian-bois

na Guiana Francesa; de forest yaws na Guiana Inglesa e de

boschyaws na Guiana Holandesa [17].

Quanto à questão do seu agente patológico, ainda através de

exames realizados nos parasitas encontrados em lesões de

doentes de

espundia,

Laveran assinalou que, diferente do

L.

tropica,

cujo núcleo apresentava-se ordinariamente arredon-

dado ou ovular, esses parasitas da região americana tinham

núcleos

“alongados e achatados ao longo da parede [celular]”.

Contudo, mesmo assim, afirmou que as pesquisas que esta-

vam sendo realizadas nesse sentido demonstravam que essa

característica não era nem constante nem exclusiva desse