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A n a i s d o I HM T
ma de paludismo [malária]”, que, por muito tempo, havia
ficado restrita às regiões montanhosas deste país [1].
Devido a seus distintos quadros e cursos clínicos, Patrick
Manson nas três primeiras edições do seu manual
Tropical
Diseases – A manual of diseases ofWarms Climate
(1898; 1900;
1906) alocou essas duas moléstias em grupos de doenças
separados. Enquanto o calazar era apresentado na sessão
destinada às “febres”, o botão do Oriente foi enquadrado no
tópico destinado às “doenças granulomatosas infeciosas”, de-
monstrando a total ausência de identidade entre essas doen-
ças, mesmo nos anos iniciais do século XX [8].
No ano de 1903, em processos completamente distintos,
foram identificados tanto o protozoário responsável pelo
botão do Oriente quanto o do calazar. Primeiro, o pesqui-
sador norte-americano James HomerWright (1869 – 1928)
encontrou parasias em tecidos de úlceras de uma criança ar-
ménia diagnosticada com botão de Aleppo e propôs deno-
miná-lo
Helcosoma tropicum
. Na Inglaterra, o médico escocês
Willian Boog Leishman (1865 – 1926) identificou durante
uma autópsia de tecidos do fígado de um soldado inglês que
havia morrido de calazar, corpúsculos ovais que acreditava
representar o seu agente patogénico. Contudo, mesmo após
seus estudos, ainda pairava uma dúvida sobre a natureza des-
se agente etiológico, não se sabia ao certo se esses organis-
mos eram esporozoários ou protozoários. Dois meses mais
tarde, o pesquisador inglês Charles Donovan (1863 – 1951)
descreveu parasitas semelhantes aos encontrados por Leish-
man e comprovou que esses eram protozoários patogénicos
responsáveis pelo calazar. O pesquisador inglês Ronald Ross
(1857 – 1932), que já havia estudado essa doença e acredi-
tava se tratar de uma infeção secundária associada à malária
propôs que fosse criado um novo género de protozoários,
chamando
Leishmania
, para enquadrar o protozoário encon-
trado porWillian Leishman e Charles Donovan [9].
Dessa forma, ficou estabelecido, em 1903, que o botão do
Oriente era causado por um protozoário denominado
Helco-
soma tropicum
enquanto que o calazar, antes considerado uma
manifestação patogénica associada à malária, passou a ser en-
tendido como uma doença particularizada que tinha como
seu agente causal um protozoário denominado
Leishmania-
-Donovani
.
Foi somente no ano seguinte, em 1904, que começou a ser
desenhada a aproximação entre essas duas moléstias. De iní-
cio, o próprio William Leishman publicou um novo artigo
no qual afirmava que o micro-organismo visto por ele e Do-
novan era similar ao identificado por JamesWright no botão
do Oriente, mas que a exata relação entre essas duas doenças
ainda permanecia incerta [9].
Dentre as muitas propostas advindas nos anos seguintes para
a denominação e a classificação desses micro-organismos,
ganhou a do pesquisador alemão Max Lühe (1870 – 1916)
que, em 1906, propôs renomear o agente etiológico do bo-
tão do Oriente para
Leishmania tropica
e assim criar o grupo
de doenças denominado leishmanioses [10].
Foi nesse processo relatado acima que duas doenças já co-
nhecidas e consideradas absolutamente distintas tiveram sua
relação de identidade construída no início do século XX,
através da similaridade observada entre seus agentes pato-
génicos, caso exemplificador da maneira pela qual o conhe-
cimento médico era construído e concebido no protocolo
pasteuriano. A partir de então as leishmanioses se tornaram
uma grande questão para os praticantes da medicina tropical.
Como protozoários morfologicamente idênticos poderiam
causar doenças absolutamente distintas? Essas diferenças es-
tariam relacionadas a diferentes ciclos biológicos no interior
de seu hospedeiro intermediário? Aliás, existiria um hos-
pedeiro intermediário? Se sim, seriam mosquitos, moscas,
lagartixas ou percevejos? E os diferentes climas e ambien-
tes em que essas doenças se encontravam? Teriam alguma
relação com as distintas manifestações? Essas eram algumas
das principais questões que norteavam as pesquisas sobre as
leishmanioses neste momento.
Uma doença americana?
Os debates sobre a individualização
do patógeno e da doença no continente
americano
Como se ainda não houvesse bastantes contradições e dis-
sensos nos estudos sobre esse novo grupo de moléstias, a
partir da década de 1910 um grupo de pesquisadores sul-
-americanos e europeus atuantes, sobretudo, no Brasil e no
Peru, começou a advogar a necessidade da individualização
das manifestações e dos protozoários patogénicos das leish-
manioses encontradas na América do Sul. O pesquisador
italiano Antonio Carini (1872 – 1950), diretor do Instituto
Pasteur de São Paulo, foi o primeiro a relatar no periódico
francês
Bulletin de la Société de Pathologie Exotique
a existência
de úlceras mucosas, sobre o nariz e a boca, com aparências
e cursos clínicos radicalmente diferenciados das tradicionais
manifestações do botão do Oriente. Em seu artigo de 1911,
Carini afirmou ter observado diversos casos de manifesta-
ções mucosas de leishmanioses no estado de São Paulo e que
apesar de não ter encontrado, mantinha a suspeita da exis-
tência de um protozoário específico responsável por esse
tipo de leishmaniose [11].
Ainda de acordo com esse pesquisador, as manifestações de
mucosas apareciam, quase sempre, em indivíduos que já ha-
viam sido acometidos por úlceras cutâneas, com caracterís-
ticas clássicas do botão do Oriente, em outras partes do cor-
po. Porém, em outras ocasiões, essas manifestações se inicia-
vam na parte de trás da boca, não permitindo interpretá-las
como uma propagação por continuidade e nem parecendo
ser fruto de processos de autoinoculações por transporte de
materiais virulentos das úlceras cutâneas originais [11].
O diretor do Instituto Pasteur de São Paulo ainda acredi-
tava que a localização de
Leishmania
nas cavidades mucosas