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Introdução
Depois de um longo tempo dos médicos americanos relata-
rem a existência, em certas regiões da América do Sul, de
doenças caracterizadas por ulcerações de pele e de mucosas,
mais uma grande confusão reinou no capítulo das doenças
ulcerosas, tanto que o diagnóstico não pode se basear solida-
mente sobre o conhecimento do agente patogénico
[1].
A epígrafe transcrita acima é o parágrafo inicial do capítu-
lo sobre a
“leishmaniose américaine de la peau et des muqueu-
ses”,
do livro escrito pelo pesquisador francês Alphonse
Laveran (1845 – 1922) intitulado
Leishmanioses. Kala-Azar,
Bouton d’Orient, Leishmaniose Americaine”
de 1917. De
acordo com o autor, esse livro, com mais de 500 páginas,
teve por objetivo reunir o conhecimento produzido nos
últimos 14 anos sobre esse grupo de doenças. Nesta oca-
sião, ao dissertar sobre essas manifestações encontradas
na América do Sul, Laveran fez menção, logo de início,
aos relatos de pesquisadores atuantes neste continente
demonstrando a participação desses atores no processo
de construção do conhecimento sobre as leishmanioses
americanas.
Entretanto, deslocada de sua obra e do restante do con-
texto no qual foi produzida, esta citação pode induzir a
pensarmos um mundo científico pacífico e inteiramen-
te conectado, onde diferentes personagens e instituições
trabalham e colaboram uns com os outros com puro ob-
jetivo de produzir um conhecimento real, objetivo e cien-
tífico sobre determinado fenómeno da natureza, no caso
em questão, doenças produzidas por protozoários do gé-
nero
Leishmania
. Contudo, ao analisarmos manuais médi-
cos e periódicos científicos produzidos à época podemos
perceber uma série de disputas, divergências, conflitos
e diferentes conclusões que, após a estabilização do co-
nhecimento são suprimidas para dar lugar a proposições
vencedoras, e seus proponentes passam a ser exaltados
como sábios do passado, geralmente “homens à frente dos
seus tempos”, que mesmo com um
estado da arte
mais ru-
dimentar tiveram êxito em produzir algo necessário para
dar continuidade a um campo de estudo mais estruturado
[2].
Neste artigo tenho como objetivo analisar a argumenta-
ção sobre a existência de leishmanias e leishmanioses pró-
prias da América do Sul, demonstrando não só as proposi-
ções favoráveis à ideia como também os conflitos internos
no campo da medicina tropical, num momento em que os
protocolos de pesquisa dessa então jovem especialidade
médica estavam sendo feitos, testados e validados simul-
taneamente.
Do botão do Oriente e calazar
às leishmanioses: protozoários,
colonialismo e medicina tropical
O início do processo de construção de conhecimento mé-
dico sobre as manifestações clínicas das leishmanioses este-
ve intrinsecamente associado à intensificação das atividades
comerciais e/ou colonialistas europeias durante os séculos
XVIII e XIX [3]. Segundo o Robert Killick-Kendrick, um
dos mais comuns
souvenirs
para aqueles que visitassem as re-
giões da Ásia e do norte da África, naquele momento, era o
seu retorno à Europa com úlceras cutâneas que, geralmente,
eram designadas conforme o lugar em que foram adquiri-
das, ou por outros nomes com referências a aspetos de sua
natureza clínica, como seu tempo de cura espontânea e/ou
a época do ano da sua maior incidência em determinadas
regiões endémicas do globo terrestre [4].
De acordo com Alphonse Laveran, a despeito de úlceras
cutâneas terem sido descritas, pela primeira vez e de “forma
sumária”, como
mal of
Aleppo, em 1756, porAlexander Rus-
sell (1714 – 1768) na Síria, foi somente a partir de 1844, em
função de epidemias ocorridas durante as batalhas de con-
quista do exército francês no sul da Argélia, que essas mani-
festações mórbidas passaram a ser vistas como um problema
real do ponto de vista da ocupação do território colonial e
começaram a ser estudadas por médicos e pesquisadores as-
sociados ao projeto colonialista francês. Gerava-se assim, a
primeira produção sistemática de conhecimento clínico eu-
ropeu sobre essas manifestações cutâneas [1].
A denominação de
Oriental sore
–
bouton d’Orient
, em francês –
foi sugerida, em 1876, pelos pesquisadores britânicosWilliam
Tilbury Fox (1836 – 1879) e T. Farquar por ocasião de uma
expedição à Índia, território colonial inglês [6]. Nesse perío-
do, sob o paradigma miasmático, essas úlceras eram, geral-
mente, entendidas como “uma forma de ectima característi-
co”, atribuída “às condições meteorológicas ou à má qualidade
da água potável” [1] e consideradas um grave empecilho para
vida europeia em determinadas regiões coloniais. De acordo
com Patrick Manson (1844- 1922), na cidade de Bagdá, mes-
mo em uma estadia de poucos dias, era praticamente impossí-
vel escapar do ataque do botão do Oriente, enquanto que, na
cidade de Deli, de 40 a 70% da população europeia residente
nessa localidade já a havia contraído [7].
Em outro pólo, pensada como uma moléstia completamen-
te distinta, sem nenhuma relação de unidade com as úlceras
cutâneas conhecidas como botão do Oriente, descritas aci-
ma, o calazar também conhecido como
black fever
ou febre
Dum-Dum preocupava as autoridades coloniais inglesas de-
vido aos seus altos índices de letalidade em decorrência de
suas manifestações viscerais, e era caracterizado como “uma
doença mal definida e muito mortal prevalente nos últimos
anos emAssam” [7], localidade endémica na qual foi descrita
pela primeira vez em 1882, na Índia. Neste momento, essa
manifestação patogénica era entendida como uma grave “for-
Políticas e redes internacionais de saúde pública no século XX