Table of Contents Table of Contents
Previous Page  106 / 210 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 106 / 210 Next Page
Page Background

106

Introdução

Depois de um longo tempo dos médicos americanos relata-

rem a existência, em certas regiões da América do Sul, de

doenças caracterizadas por ulcerações de pele e de mucosas,

mais uma grande confusão reinou no capítulo das doenças

ulcerosas, tanto que o diagnóstico não pode se basear solida-

mente sobre o conhecimento do agente patogénico

[1].

A epígrafe transcrita acima é o parágrafo inicial do capítu-

lo sobre a

“leishmaniose américaine de la peau et des muqueu-

ses”,

do livro escrito pelo pesquisador francês Alphonse

Laveran (1845 – 1922) intitulado

Leishmanioses. Kala-Azar,

Bouton d’Orient, Leishmaniose Americaine”

de 1917. De

acordo com o autor, esse livro, com mais de 500 páginas,

teve por objetivo reunir o conhecimento produzido nos

últimos 14 anos sobre esse grupo de doenças. Nesta oca-

sião, ao dissertar sobre essas manifestações encontradas

na América do Sul, Laveran fez menção, logo de início,

aos relatos de pesquisadores atuantes neste continente

demonstrando a participação desses atores no processo

de construção do conhecimento sobre as leishmanioses

americanas.

Entretanto, deslocada de sua obra e do restante do con-

texto no qual foi produzida, esta citação pode induzir a

pensarmos um mundo científico pacífico e inteiramen-

te conectado, onde diferentes personagens e instituições

trabalham e colaboram uns com os outros com puro ob-

jetivo de produzir um conhecimento real, objetivo e cien-

tífico sobre determinado fenómeno da natureza, no caso

em questão, doenças produzidas por protozoários do gé-

nero

Leishmania

. Contudo, ao analisarmos manuais médi-

cos e periódicos científicos produzidos à época podemos

perceber uma série de disputas, divergências, conflitos

e diferentes conclusões que, após a estabilização do co-

nhecimento são suprimidas para dar lugar a proposições

vencedoras, e seus proponentes passam a ser exaltados

como sábios do passado, geralmente “homens à frente dos

seus tempos”, que mesmo com um

estado da arte

mais ru-

dimentar tiveram êxito em produzir algo necessário para

dar continuidade a um campo de estudo mais estruturado

[2].

Neste artigo tenho como objetivo analisar a argumenta-

ção sobre a existência de leishmanias e leishmanioses pró-

prias da América do Sul, demonstrando não só as proposi-

ções favoráveis à ideia como também os conflitos internos

no campo da medicina tropical, num momento em que os

protocolos de pesquisa dessa então jovem especialidade

médica estavam sendo feitos, testados e validados simul-

taneamente.

Do botão do Oriente e calazar

às leishmanioses: protozoários,

colonialismo e medicina tropical

O início do processo de construção de conhecimento mé-

dico sobre as manifestações clínicas das leishmanioses este-

ve intrinsecamente associado à intensificação das atividades

comerciais e/ou colonialistas europeias durante os séculos

XVIII e XIX [3]. Segundo o Robert Killick-Kendrick, um

dos mais comuns

souvenirs

para aqueles que visitassem as re-

giões da Ásia e do norte da África, naquele momento, era o

seu retorno à Europa com úlceras cutâneas que, geralmente,

eram designadas conforme o lugar em que foram adquiri-

das, ou por outros nomes com referências a aspetos de sua

natureza clínica, como seu tempo de cura espontânea e/ou

a época do ano da sua maior incidência em determinadas

regiões endémicas do globo terrestre [4].

De acordo com Alphonse Laveran, a despeito de úlceras

cutâneas terem sido descritas, pela primeira vez e de “forma

sumária”, como

mal of

Aleppo, em 1756, porAlexander Rus-

sell (1714 – 1768) na Síria, foi somente a partir de 1844, em

função de epidemias ocorridas durante as batalhas de con-

quista do exército francês no sul da Argélia, que essas mani-

festações mórbidas passaram a ser vistas como um problema

real do ponto de vista da ocupação do território colonial e

começaram a ser estudadas por médicos e pesquisadores as-

sociados ao projeto colonialista francês. Gerava-se assim, a

primeira produção sistemática de conhecimento clínico eu-

ropeu sobre essas manifestações cutâneas [1].

A denominação de

Oriental sore

bouton d’Orient

, em francês –

foi sugerida, em 1876, pelos pesquisadores britânicosWilliam

Tilbury Fox (1836 – 1879) e T. Farquar por ocasião de uma

expedição à Índia, território colonial inglês [6]. Nesse perío-

do, sob o paradigma miasmático, essas úlceras eram, geral-

mente, entendidas como “uma forma de ectima característi-

co”, atribuída “às condições meteorológicas ou à má qualidade

da água potável” [1] e consideradas um grave empecilho para

vida europeia em determinadas regiões coloniais. De acordo

com Patrick Manson (1844- 1922), na cidade de Bagdá, mes-

mo em uma estadia de poucos dias, era praticamente impossí-

vel escapar do ataque do botão do Oriente, enquanto que, na

cidade de Deli, de 40 a 70% da população europeia residente

nessa localidade já a havia contraído [7].

Em outro pólo, pensada como uma moléstia completamen-

te distinta, sem nenhuma relação de unidade com as úlceras

cutâneas conhecidas como botão do Oriente, descritas aci-

ma, o calazar também conhecido como

black fever

ou febre

Dum-Dum preocupava as autoridades coloniais inglesas de-

vido aos seus altos índices de letalidade em decorrência de

suas manifestações viscerais, e era caracterizado como “uma

doença mal definida e muito mortal prevalente nos últimos

anos emAssam” [7], localidade endémica na qual foi descrita

pela primeira vez em 1882, na Índia. Neste momento, essa

manifestação patogénica era entendida como uma grave “for-

Políticas e redes internacionais de saúde pública no século XX