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também se apresentava em outros países nos quais a forma
cutânea era endémica. E, que, se até então, não haviam sido
relatadas, isso se devia aos frequentes erros de diagnóstico
clínico, que levavam à confusão entre essas manifestações
mucosas de
Leishmania
e doenças como a sífilis, a tuberculo-
se, a blastomicose e a bouba [11].
No Peru, dois meses após a publicação de Carini, Edmundo Es-
comel (1880 – 1959), cientista desse país andino publicou um
artigo intitulado
“La espundia”
no periódico científico francês.
Relatando ter observado diversos casos de uma moléstia cróni-
ca, caracterizada por ulcerações granulosas, com diversos anos
de duração, encontradas, sobretudo, próximas às florestas de
“vegetação exuberante, temperatura quente e grande umidade”
da zona central do Peru, esse pesquisador descreveu, de forma
sumária, alguns casos observados dessas úlceras popularmente
conhecidas pelo nome do título de seu artigo [12].
Apesar de ter tentado identificá-las às doenças já conhecidas
em seu país de origem, Escomel chegou à conclusão de que
as diferenças entre essas moléstias e a manifestação mórbida
denominada
espundia
eram muito grandes. Descreveu-a, en-
tão, afirmando que “a
espundia
é uma doença crónica, granu-
losa, que existe dentro de algumas florestas do Peru e da Bo-
lívia e, provavelmente, em outros países da América do Sul”.
Concluiu seu artigo dizendo que o seu agente patogénico
e o seu tratamento ainda eram desconhecidos e deixou em
aberto as questões etiológicas dessa moléstia para definição
em trabalhos posteriores [12].
Em outubro desse mesmo ano, o jovem pesquisador paraen-
se Gaspar Vianna (1885 – 1914), recém-contratado pelo
Instituto Oswaldo Cruz, publicou no periódico científico
Brazil-Médico
uma nota preliminar relatando que, ao analisar
amostras de tecidos de um paciente de São João do Além
Paraíba, Minas Gerais, internado na 3
ª
enfermaria do Hospi-
tal da Misericórdia do Rio de Janeiro e que não apresentava
os sinais clássicos de leishmaniose, identificou protozoários
“com a forma d’um ovoide”, “núcleo localizado um pouco
acima da parte mediana” que julgava pertencer ao género
Leishmania
. Mas, devido à presença de um filamento “talvez
rudimento de flagelo, não observado até hoje”, julgava que
esse parasita poderia “ser considerado como uma nova espé-
cie” desse género [13].
De acordo com Gaspar Vianna, esse filamento encontrado
caracterizaria “de um modo nítido” o novo protozoário que
seria o responsável pela existência de modalidades anóma-
las de leishmaniose no Brasil. O pesquisador de Manguinhos
batizou esse protozoário de
Leishmania brazilienses
e concluiu
sua breve nota preliminar afirmando estar “aguardando estu-
dos posteriores para sua minuciosa descrição morfológica e
biológica” [13].
Portanto, em finais de 1911, existiam três diferentes rela-
tos de úlceras de mucosas e de pele advindos da América
do Sul. Em São Paulo, Carini suspeitava da existência de um
patógeno diferenciado, que não havia encontrado, no Peru,
Escomel narrava ter observado casos de uma moléstia de
pele ulcerosa, que apesar de suas indefinições, tinha relações
com regiões de floresta e no Rio de JaneiroVianna defendia
a hipótese de ter encontrado um protozoário diferenciado
do género
Leishmania
, num caso “anómalo” dessa doença.
Essa nova espécie de
Leishmania
proposta por GasparVianna,
no entanto, foi recebida com bastante precaução nos princi-
pais fóruns médicos nacionais e estrangeiros nesse momen-
to. No início da década de 1910, uma grande parte dos pes-
quisadores interessados na problemática das leishmanioses
suspeitava sim da existência de um ou mais protozoários di-
ferenciados e próprios de determinadas regiões da América
do Sul. Contudo a distinção proposta por GasparVianna não
conseguiria, de imediato, uma total adesão para servir como
justificativa para essa diferenciação. O principal da proposta
de distinção das manifestações de leishmanioses na América
se encontrava na doença – ou melhor, nos seus diferentes
cursos clínicos – e não nos patógenos – morfologicamente
considerados idênticos.
No ano seguinte, Alphonse Laveran e Louis Nattan-Larrier
publicaram dois artigos no
BSPE
sugerindo “contribuições”
ao estudo da
espundia
. Na primeira oportunidade, em março
de 1912, relatando terem recebido de Edmundo Escomel
materiais como um pedaço de mucosa do palato duro de um
paciente que convivia com a
espundia
há 15 anos e esfregaços
feitos sobre ulcerações de doentes peruanos, esses pesqui-
sadores franceses afirmaram ter localizado protozoários do
género
Leishmania
“com uma grande analogia com a
L. tropi-
ca,
mas apresentando uma particularidade que nos pareceu
interessante.” [14].
De acordo com esses cientistas, apesar da semelhança mor-
fológica entre esses protozoários, àqueles que foram loca-
lizados nos materiais enviados por Escomel apresentavam
comportamento e dimensões ligeiramente diferenciados.
Entretanto, na conclusão desse artigo, modestamente, afir-
maram que “as observações relatadas nesta nota, tendem a
demonstrar que a
espundia
, como bem descrita por nosso co-
lega Dr. Escomel, tem por um agente uma
Leishmania
como a
bouba estudada por Bueno de Miranda, Splendore e Carini.”
[14].
Quatro meses mais tarde, esses dois pesquisadores franceses
publicaram sua segunda “contribuição” aos estudos da
espun-
dia
. Nesta nova oportunidade, analisando novos materiais
enviados por Escomel, esses pesquisadores anunciavam ainda
em seu primeiro parágrafo que os protozoários do género
Leishmania
encontradas nesses tecidos se diferenciavam um
pouco da
L. tropica
e da
L. donovani
, pois tanto as suas di-
mensões como o seu comportamento em cultura variavam
quando comparados às leishmanias já conhecidas. Contudo,
na parte final do seu artigo, relatavam que CharlesWenyon,
pesquisador inglês e professor da Escola de Medicina Tropi-
cal de Londres, havia encontrado os mesmos supostos sinais
diferenciais das leishmanias sul-americanas em protozoários
do botão do Oriente em Bagdá, derrubando, desta forma, as
supostas particularidades do patógeno americano.
Políticas e redes internacionais de saúde pública no século XX