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De “medicina colonial”
para “medicina tropical”:
o “caso” de São Paulo
A presença da Fundação Rockefeller no Brasil tem sido es-
tudada sob vários aspetos, entre os quais, o financiamento
para implantação de atividades científicas associadas à pesquisa
biomédica, às práticas médicas de assistência à saúde, além do
apoio à institucionalização de outros saberes especializados em
universidades e centros de pesquisa [1 a 17]. Nesse artigo, pro-
curo argumentar que sua atuação em São Paulo, entre meados
da década de 1920 até o final dos anos 1960, e a partir da Fa-
culdade de Medicina, incidiu sobre o campo de atuação médi-
ca que no início do século XX era genericamente denominado
“medicina colonial” e abrigava em seu interior um conjunto
de práticas e saberes em torno principalmente da parasitolo-
gia. Por meio dessa linha de argumentação, considero que a
presença da Fundação Rockefeller em São Paulo foi um dos
fatores decisivos para alterar a configuração de tais práticas e
saberes na direção do que se tornaria cada vez mais difundido
nos círculos científicos internacionais como “medicina tropi-
cal” [18].
Nessa perspetiva, ganha relevo a criação, em 1959, do Institu-
to de Medicina Tropical de São Paulo (IMTSP), inicialmente
vinculado à própria Faculdade de Medicina (FMUSP) e, mais
tarde, transformado em unidade de pesquisada Universidade
de São Paulo Alguns indicadores são relevantes dessa presen-
ça intensiva e chama a atenção o facto de que as principais
lideranças que conduziram o processo de institucionalização
desse campo de saber, na “chave” medicina tropical, estabe-
leceram vínculos com a
Fundação Rockefeller
na condição de
bolsistas (
fellows
) que completaram sua formação nos Estados
Unidos, ou na Europa, com recursos da agência.Alguns, além
dos estágios no exterior, mantiveram-se vinculados, por meio
de financiamentos regulares para laboratórios e programas de
pesquisa.
O processo de intensa institucionalização da área, permeado
pelos vínculos com a Fundação Rockefeller, pode ser acom-
panhado inicialmente pela formação do IMTSP, cuja compo-
sição do primeiro Conselho Deliberativo, principal instância
decisória do novo instituto, foi integralmente formada por do-
centes que eram também bolsistas da
Fundação Rockefeller
, no
caso, Carlos da Silva Lacaz, João Alves Meira e Dácio Franco
do Amaral. Outro indicador elucidativo da intensidade desses
vínculos pode ser assinalado pela criação, já em 1959, da
Revis-
ta do Instituto de MedicinaTropical
, publicação ainda em circula-
ção.
Editada até 1964 por Luis Rey, seu idealizador, e a partir daí
por Carlos da Silva Lacaz, que manteve essa posição até 1985,
a revista começou a veicular artigos em inglês no começo
dos anos 1960. Pouco depois de sua criação, as edições passa-
ram a ser apoiadas pela Organização Panamericana de Saúde
(OPAS), a exemplo de três outras publicações relevantes da
América Latina. Foram elas:
Acta Physiologica Latinoamericana
,
editada em BuenosAires por BernardA. Houssay,
ArchivosVene-
zolanos de Nutrición
, sob a responsabilidadeWerner G. Jaffe, de
Caracas, e
Boletín Chileno de Parasitología
, publicado em Santia-
go do Chile, sob a coordenação de Amador Neghme. Note-se
que todos os editores das revistas apoiadas pela OPAS foram
bolsistas da
Fundação Rockefeller
. Bernard Houssay, prémio No-
bel de Medicina e Fisiologia foi amplamente apoiado em suas
pesquisas, assim comoWerner G. Jaff e Amador Negme.
Nesse mesmo contexto, e ainda em 1959, o IMT instituiu
os cursos de especialização em Medicina Tropical, com ofer-
ta anual, e que se tornaram ao longo da década um polo de
atração para médicos e sanitaristas da América do Sul. Em sua
oferta inicial recebeu um venezuelano e a presença de perua-
nos, argentinos e chilenos cresceria nos anos subsequentes.
Outro aspeto relevante desse processo de reconfiguração da
área pode ser verificado pela criação, em 1962, da Sociedade
Brasileira de MedicinaTropical, que passou a promover a rea-
lização dos Congressos Brasileiros de MedicinaTropical.
Concebida e instituída no ambiente da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (FMUSP-
-RP), a iniciativa teve entre seus idealizadores bolsistas da Fun-
dação Rockefeller, como Mauro Pereira Barreto. Por outro
lado, sob a condução de ZeferinoVaz, entre 1947e 1952 a pró-
pria Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto havia sido con-
cebida e implantada como o segundo grande investimento da
Fundação no ensino médico em São Paulo. Parasitologista for-
mado em 1931 na Faculdade de Medicina de São Paulo, onde
ingressou como aluno em 1926 e começou no mesmo ano a
atuar no laboratório dirigido por LauroTravassos, a quem re-
conhece como o principal inspirador de sua carreira científica
(VAZ, 1986), Zeferino foi uma das figuras mais relevantes na
institucionalização do campo biomédico no estado.
Em São Paulo, atuou por cerca de quarenta anos, como dire-
tor da Faculdade de MedicinaVeterinária, depois idealizador e
diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ambas na
Universidade de São Paulo, entre meados da década de 1930
e final dos anos 1950. Em 1965, assumiu a reitoria da Uni-
versidade de Campinas (Unicamp) que ajudou a conceber e
implantar e onde ficou até
1978.Aolongo das quatro décadas
de sua atuação institucional foi um dos mais atuantes parceiros
da
Fundação Rockefeller
em São Paulo e a partir de 1964 um in-
terlocutor permanente do regime militar instituído pelo golpe
de 31 de março.
Desse modo, a análise aqui desenvolvida soma-se a estudos an-
teriores que apontam a presença da
Fundação Rockefeller
como
parte de processos que se inscreveram em transformações
profundas da sociedade brasileira e conduziram a construção
de novas racionalidades, como apontado por Sérgio Buarque
de Holanda e Gilberto Freyre [19, 20]. Considero, portanto,
a atuação dessa agência como inserida no processo que em es-
cala mundial disputava não só modelos de novas racionalida-
des médicas e científicas, mas tratava de afirmar a prevalência,
preservação e reprodução de uma ordem social constituída
por fundamentos ultraliberais associados ao
establishment
inter-
Políticas e redes internacionais de saúde pública no século XX