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se cotejam os acordos, trocas e intercâmbios com os Estados
Unidos, constata-se que os fluxos com esse país, que já vinham
ocorrendo de modo crescente, ganharam maior escala e abran-
gência. Contudo, nas décadas iniciais da Faculdade de Medicina,
as tradições da pesquisa realizada na França ainda se manifesta-
vam de modo bastante evidente, como se encontra analisado a
seguir. Para tal análise, optou-se por acompanhar a trajetória de
Celestino Bourroul, como pode ser conferido abaixo.
Celestino Bourroul
e a “medicina colonial” em São Paulo
Descendente de franceses procedentes de Antibes que se esta-
beleceram em São Paulo em meados do século XIX, Celestino
Bourroul nasceu nessa cidade em 1880, filho do médico Paulo
Bourroul e de sua prima Sebastiana Bourroul. Em 1899, ma-
triculou-se na Faculdade de Medicina de Salvador e retornou a
São Paulo em 1904. Em seguida foi para França, onde manteve
contacto com o Instituto Pasteur, de Montpellier, com Grasset,
Rolart e também com Blanchard, no Instituto de Medicina Co-
lonial de Paris. Depois da França, estagiou com Orth, no La-
boratório de Anatomia Patológica da Universidade de Berlim
e, em seguida, em Viena, onde buscou especialização Clínica
Médica, Radiologia e Anatomia Patológica. A viagem de estu-
dos para a Europa foi uma decorrência de sua premiação como
melhor estudante de no ano de sua formatura na Faculdade de
Medicina da Bahia, em 1904.
Em1910, já plenamente estabelecido na capital paulista, o anún-
cio de seu Laboratório de pesquisas clínicas figurava na secção de
classificados do jornal O Estado de São Paulo, ao lado de outros
renomados médicos e estabelecimentos da cidade, assinalando
a experiência no exterior, e particular no Instituto de Medicina
Colonial de Paris, nos seguintes termos:
LABORATORIO DE PESQUIZAS CLINICAS do Dr.CELESTI-
NO BOURROUL,do Instituto de Medicina Colonial de Pariz,
Ex-Preparador do Instituto Pasteur de Montpellier, com pratica
no Instituto Pathologico de Berlim eVienna Exames anathomo-
-pathologicos, bacteriologia e analyses clinicas, sôro-diagnosti-
cos e reacção deWassermann. Rua da Glória, 75-A. (OESP, 10
de Outubro de 1910,p.7)
A experiência de Bourroul com o Instituto de Medicina Colo-
nial em Paris, e com Rafael Blanchard, já havia sido assinalada
anteriormente pelo mesmo jornal. Diretor do Laboratório de
Parasitologia da Faculdade de Medicina, criador do Instituto do
Medicina Colonial, em funcionamento desde 1902 no quarto
pavimento da própria Faculdade de Medicina de Paris, Blan-
chard havia-se firmado como um dos expoentes da parasitologia
francesa no início do século XX. Em 1908, O Estado de São
Paulo reproduziu longos trechos de matéria publicada pelo Petit
Journal, apresentado como a “popular folha parisiense”, que in-
dicava a presença de dois cientistas estrangeiros no Laboratório
de Blanchard no Instituto de Medicina Colonial. Um deles era
o professor da Universidade do México, Zuniga y Aracates, e o
segundo o próprio Bourroul [21].
Entre os trechos selecionados pelo jornal estava o relato de Blan-
chard sobre as atividades mais recentes do Laboratório, no qual
assinalava a condição daquele centro como referência e ponto de
atração de pesquisadores, conforme reproduzido a seguir:
As mais recentes descobertas feitas pelos nossos laboratórios são
relativas à doença do somno.Todos os jornaes falaram sobre isso.
(...) O laboratório sob minha direcção estudou todos os estra-
gos feitos pela doença do somno em seguida a uma missão ao
Congo,dirigida pelo dr.Brumpt,chefe dos trabalhos práticos do
laboratorio de
parasitologia.Asnossas pesquizas não são simples
curiosidades e acham se na vanguarda do movimento scientifi-
co: lançam a medicina em novos caminhos que modificarão por
completo as condições da vida. (...) Recebemos incessantemen-
te a visita de muitos médicos estrangeiros e principalmente de
latino-americanos,o que é fácil de explicar,desde que esse ramo
da sciencia domina toda a medicina dos paizes quente
[21].
Apesar de se colocar como referência internacional, ainda as-
sim, Blanchard apontava para dificuldades na condução das pes-
quisas, como relatado no trecho abaixo:
O campo de investigação é immenso. Temos realisado estudos
sobre a febre amarella, a peste, a febre dos argas, a doença do
somno,a elephancia dos árabes e outras que tanto prejudicam as
nossas colônias. Estamos de posse da collecção mais importante
que existe,de todas as culturas vivas dos parasitas que produzem
taes doenças e do grande numero de outras que não me é possí-
vel numerar agora.Todos esses seres imperceptíveis multiplicam-
-se, criam-se em estufas especiaes (...). Como animaes de expe-
riências, usamos macacos, doninhas, ratos, coelhos, cobaias ou
porcos da India, peixes, batrachios, etc. Ao lado do laboratório
propriamente dito, existe o Instituto de Medicina Colonial por
mim creado do alto a baixo ha seis annos prestando aos médicos
de nossas possessões ultramarinas os mais assignalados serviços.
Infelizmente, não podemos contar com as ricas dotações dos la-
boratorios allemães e americanos e a falta de dinheiro para as
nossas experiências é frequentemente sentida
[21].
O contacto de Celestino Bourroul com o ambiente do Instituto
de Medicina Colonial seria um dos elos a ligar instituições mé-
dicas de São Paulo e da França.Anos mais tarde, por exemplo,
quando a Faculdade de Medicina e Cirurgia de foi criada em
1912, e instalada em 1913, Emile Brumpt, da Universidade de
Paris, se tornaria um dos professores contratados no exterior
para assumir a cadeira de História Natural Médica e implantar
um laboratório de pesquisa em Parasitologia na escola recém-
-fundada. No mesmo período, viria também da França para a
cadeira de Fisiologia da Faculdade deMedicina e Cirurgia de São
Paulo, Lambert Mayer, de Nancy. Provavelmente, os contactos
iniciais entre Blanchard e Bourroul tenham sido intermedia-
Políticas e redes internacionais de saúde pública no século XX