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Introdução
Com a derrota do nazismo, do fascismo e do império japonês,
emergia da IIª Guerra Mundial um mundo bipolar, numa rede
de poderes extremada em dois grandes polos, um capitalista,
a Oeste, outro socialista, no Leste [1,2,3]. O país estava sob o
regime de António Salazar [4], uma ditadura nacionalista ar-
mada de uma couraça protetora dos embriões da revolução,
sobretudo da revolução comunista, que articulou uma política
de emigração não linear, mas adepta da proteção contra “os ou-
tros”.OEstado Novo sempre se distanciou de um envolvimento
no conflito mundial, desde o primeiro dia, a 1 de setembro de
1939. Recusou a aliança ao pacto
anti-komintern
proposta pelo
embaixador italiano, mantendo apenas um acordo de coopera-
ção militar com a Grã-Bretanha, para modernização das forças
armadas portuguesas, sem que a liberdade de movimentação
nacional, fosse atropelada pelos interesses britânicos.
Consolidada a vitória dos aliados, a emigração portuguesa vol-
taria a crescer em Portugal. A ausência de antissemitismo na
ideologia salazarista, não obstante o regime ditatorial português
nutrir simpatia com o anticomunismo e o anti-liberalismo nazi,
foi responsável pela estadia temporária de trânsito em Portugal
de inúmeros judeus alemães [5, 6], bem como de outros refugia-
dos polacos, russsos e heimatlos (apátridas).
A historiografia do Estado Novo aponta para uma oscilação no
controlo de fronteiras, que nem sempre era seguido pelas au-
toridades
in locu
, da mesma forma que a lei previa [7, 8]. Não
obstante o controlo efetivo pela Polícia de Vigilância e Defesa
do Estado (PVDE), entre 1939 e 1950, entraram em Portugal
muitos milhares de estrangeiros. Entre estes estavam também
famílias inteiras de ex-governantes da Europa ocupada, que es-
colhiam Cascais e o Estoril para residirem, ao lado de espiões,
diplomatas, cientistas e intelectuais. Foi o caso do Rei Humber-
to II, da Casa de Saboia, que, com apenas 33 dias de reinado em
Itália, escolheu Cascais para se exilar durante 36 anos, na Villa
Italia, uma vivenda que hoje é propriedade do Hotel GrandVilla
Italia.
Adaptando a teoria da reorganização geográfica pós IIª Guerra
Mundial de Gottmann, que assenta na dialética entre a partição
territorial e a circulação entre fronteiras, ao quadro de referen-
ciais da medicina global definida no contexto da Organização
Mundial de Saúde, facilmente se depreende uma analogia de
conceitos. A teoria da emergência das entidades políticas [3] é
também notória nas agências internacionais com representativi-
dade no domínio da saúde global, como sejam as Nações Unidas,
a Organização Mundial de Saúde, as organizações filantrópicas e
os países com influência nestas agências. Embora a historiografia
valorize na agenda da globalização os projetos de combate efeti-
vo às doenças endémicas ou epidémicas sem fronteiras geográ-
ficas, é importante recuperar algumas tendências mais recentes,
que englobam nestas histórias de “sucesso”, um intrínseco mo-
saico de atores e agentes locais, cuja expressão aparece muitas
vezes diluída na narrativa daquelas agências e países [9, 10, 11,
12, 13, 14]. Importa por isso dar a conhecer alguns elementos
menos conhecidos da história da medicina tropical portugue-
sa, nos quais este estudo também se insere.Após o desfecho do
conflito mundial, duas dinâmicas se definiram para Portugal,
no cenário internacional: por um lado, a participação nacional
na Organização Mundial de Saúde, que abriu novos horizontes
de visibilidade para a medicina tropical portuguesa, na interfa-
ce com o processo de descolonização em África; por outro, o
impacto da circulação de investigadores médicos pelo Instituto
de Medicina Tropical e instituições sucedâneas, como é disso
exemplo, o médico italiano, Aldo Castellani, objeto de análise
neste estudo.
Aldo Castellani
– breves elementos biográficos
Aldo Luigi Mario Castellani nasceu em Florença, a 8 de setem-
bro de 1877, e faleceu com 94 anos, em Lisboa, a 3 de outubro
de 1971. Concluiu o curso de medicina na Universidade de Flo-
rença em 1899 e, dois anos depois, fez um estágio no laborató-
rio deWalter Kruse, naAlemanha, onde se notabilizou pela pro-
posta de um teste bioquímico de aglutinação proteica, que ficou
conhecido pelo teste de absorção de Castellani.
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Estes resulta-
dos terão estado na origem do convite que Patrick Manson lhe
endereçou em 1901, para integrar o quadro de investigadores
da
London School of Tropical Medicine
e, no ano seguinte, ser no-
meado para fazer parte da primeira missão britânica de estudo
da doença do sono em 1902, no Entebe [15]. Desentendimen-
tos com a equipa conduziram-no ao Ceilão, onde foi professor
de MedicinaTropical e Dermatologia, no
Ceylon Medical College
,
entre 1903 e 1915.Aqui realizou os primeiros estudos que lhe
permitiram descobrir o agente etiológico da framboesia, uma
doença típica desta região tropical [16].
Em1906 casou-se com JosephineAmbler Stead (de nacionalida-
de inglesa) [15], da qual teve uma filha, JacquelineAldine Leslie
Castellani (que faleceu em outubro 2015 com 105 anos).
Em 1915 foi convidado para regressar ao seu país, onde assumiu
o cargo de professor de Medicina Tropical na Universidade de
Nápoles. Pouco tempo aqui esteve, pois foi mobilizado para o
teatro de guerra. Foi médico de campanha na Iª Guerra Mundial
na Sérvia e nos Balcãs entre 1915 e
1919.Aoterminar a guerra
regressou a Londres e ocupou vários cargos em diferentes ins-
titutos e clinicas médicas: foi professor de micologia na
London
School of Tropical Medicine
, de MedicinaTropical e Dermatologia
no
Ross Institute
(Londres), de MedicinaTropical na
Tulane Uni-
versity
e na
Louisiana State University
(New Orleans, USA), ao
mesmo tempo que fazia clínica no
Ross Hospital forTropical Disea-
ses
(Londres), no
Charity Hospital
(New Orleans, USA), tendo
também assumido cargos de direção na
School ofTropical Medicine
(NewOrleans,USA), na
Clinitca delle Malattie e Subtropical
(Uni-
versidade de Roma) [17].
De convicções monárquicas assumidas viveu momentos, nem
sempre fáceis, na defesa dos seus ideais políticos. Veja-se por
exemplo a sua relação com o Reino Unido. Pelo reconhecimen-
Políticas e redes internacionais de saúde pública no século XX