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Artigo Original
3 - Da relação entre o direito à saúde
e a cobertura universal
A palavra “cobertura” para a setorial saúde pode indicar: (i) o
alcance de uma medida sanitária e está associada ao cumpri-
mento da prestação positiva de saúde, com seu acesso e uso;
ou, (ii) a possibilidade de obter uma prestação positiva, que
pode ou não se realizar por abstenção do uso ou pela incapaci-
dade de obtenção (14).
Ou seja, a cobertura que está associada ao cumprimento da
prestação positiva de saúde torna-se mais complexa, na me-
dida em que inclui a disponibilidade para o acesso, o uso e
não impõe barreiras para que seja efetivado o direito à saúde.
Já na outra conceção, em que há oferta de prestação positiva
de saúde,mediante o cumprimento de condições (desembolso
direto, contratação de seguros ou plano de saúde, contribui-
ção, etc.), o direito à saúde estará à mercê da possiblidade de
que barreiras sejam ultrapassadas. A primeira conceção está
atrelada aos sistemas universais de saúde e a segunda à oferta
condicionada, portanto, mais íntima dos sistemas privados de
saúde. A confluência entre o conceito de direito à saúde por
meio de acesso a um sistema universal e igualitário e o concei-
to de cobertura universal da saúde não guardam confluência,
nem harmonia.
Ao compreender que os serviços de saúde, no âmbito do con-
ceito de cobertura universal significam métodos para promo-
ção, prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos,
abrangendo assistência médica em comunidades, centros de
saúde e hospitais (15), implica afirmar que os serviços essen-
ciais de saúde devem ser assegurados de modo a não permitir
que ninguém esteja abaixo da linha da miséria. Isso significa
dizer que os custos com a saúde devem ser suportados pelo
conjunto da população, o que pode ser obtido pela utilização
de índices compostos que agregam uma série de indicadores
determinados pelos Estados, individualmente, e em confor-
midade com a lógica económica e de financiamento de seus
sistemas de saúde.
Não se deve esquecer que o processo de globalização, ao tem-
po em que gera possibilidades de crescimento económico e
avanços nos campos científico e tecnológico, evidencia con-
trastes económicos e sociais que se indicam exclusão de mui-
tos países e pessoas, que continuam imersos em situação de
subdesenvolvimento. Isto faz com que a pobreza permaneça
como uma realidade fática para bilhões de pessoas no globo,
o que limita a criação de condições sociais necessárias para a
saúde, com a geração de grandes iniquidades entre países e
mesmo dentro deles. Assim estão postas as condições para o
surgimento ou manutenção de assimetrias de poder na ordem
económica internacional, com consequentes limitações para
o desenvolvimento económico e social dos países, o que favo-
rece a transformação das desigualdades em iniquidades (15).
Em 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS), por do-
cumento de sua autoria denominado “O Financiamento dos
Sistemas de Saúde – o caminho para a cobertura universal” (2),
estreia o conceito de cobertura universal com base na necessi-
dade de uma reorientação na área da saúde em um momento
que se caracteriza pela recessão económica, custos crescentes
para a atenção à saúde, envelhecimento populacional, aumen-
to de enfermidades crônicas e novas tecnologias dispendiosas.
O informe induz ainda para a exploração de evidências en-
tre os países membros da OMS no que se refere ao modo de
obtenção de mecanismo alternativo de financiamento de seus
sistemas de saúde para atingir o que convencionou chamar de
cobertura universal.
Contudo, parece frágil a justificativa na qual se baseia o con-
ceito de cobertura universal, na medida em que responsabiliza
o indivíduo pelos custos oriundos da proteção à saúde.Tornar
majoritária a lógica do mercado e deslocar o Estado às som-
bras, ao papel coadjuvante, quiçá caritativo, é alterar a com-
preensão posta para direito humano, para direito fundamental
e para o direito à saúde.
No caso do Brasil, as experiências negativas acumuladas com o
atendimento oferecido por planos e seguros privados de saúde
aniquilam os fundamentos de que unicamente o mercado seja
capaz de resolver necessidades sociais (16).
Considerações finais
O êxito dos Estados que têm por princípio a solidariedade,
a preservação dos direitos humanos e sociais nem sempre se
esgota num modelo administrativo e governamental perfeito.
Por vezes, revela-se na consideração da realidade social, na
equidade, nos padrões de comportamento e nas interações
político-sociais.
Mesmo considerando que os direitos de bem-estar - dentre
eles a saúde - foram recentemente acrescidos ao campo dos
direitos humanos e sociais, e, portanto, não estão suficien-
temente encampados pelos Estados, isso não os exclui de
debates e de consequências que inter-relacionam o desem-
penho económico e a racionalidade pública.
Ainda que padeçam de críticas de institucionalização (os
direitos devem ser institucionalizados, ou não são direitos)
e críticas de exequibilidade (apesar dos melhores esforços,
talvez não seja possível efetivar o direito universal) é pre-
ciso, em prol dos sistemas universais, conhecer a tese das
obrigações imperfeitas, que indica que mesmo não havendo
alcance total do direito, ele não deixa de ser um direito
(17).
A adoção de condições para o acesso de direito humano
e social à saúde, que fundamenta o conceito de cobertura
universal, confronta a igualdade e a não discriminação en-
tre humanos, assevera as divisões oriundas do poder econó-
mico e rende-se à lógica de mercado.
A crescente demanda por ações e serviços de saúde acessí-
veis e de qualidade impõe aos Estados a tomada de decisões
políticas acertadas e que não esgarcem o já corroído tecido
social.