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S54

Artigo Original

3 - Da relação entre o direito à saúde

e a cobertura universal

A palavra “cobertura” para a setorial saúde pode indicar: (i) o

alcance de uma medida sanitária e está associada ao cumpri-

mento da prestação positiva de saúde, com seu acesso e uso;

ou, (ii) a possibilidade de obter uma prestação positiva, que

pode ou não se realizar por abstenção do uso ou pela incapaci-

dade de obtenção (14).

Ou seja, a cobertura que está associada ao cumprimento da

prestação positiva de saúde torna-se mais complexa, na me-

dida em que inclui a disponibilidade para o acesso, o uso e

não impõe barreiras para que seja efetivado o direito à saúde.

Já na outra conceção, em que há oferta de prestação positiva

de saúde,mediante o cumprimento de condições (desembolso

direto, contratação de seguros ou plano de saúde, contribui-

ção, etc.), o direito à saúde estará à mercê da possiblidade de

que barreiras sejam ultrapassadas. A primeira conceção está

atrelada aos sistemas universais de saúde e a segunda à oferta

condicionada, portanto, mais íntima dos sistemas privados de

saúde. A confluência entre o conceito de direito à saúde por

meio de acesso a um sistema universal e igualitário e o concei-

to de cobertura universal da saúde não guardam confluência,

nem harmonia.

Ao compreender que os serviços de saúde, no âmbito do con-

ceito de cobertura universal significam métodos para promo-

ção, prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos,

abrangendo assistência médica em comunidades, centros de

saúde e hospitais (15), implica afirmar que os serviços essen-

ciais de saúde devem ser assegurados de modo a não permitir

que ninguém esteja abaixo da linha da miséria. Isso significa

dizer que os custos com a saúde devem ser suportados pelo

conjunto da população, o que pode ser obtido pela utilização

de índices compostos que agregam uma série de indicadores

determinados pelos Estados, individualmente, e em confor-

midade com a lógica económica e de financiamento de seus

sistemas de saúde.

Não se deve esquecer que o processo de globalização, ao tem-

po em que gera possibilidades de crescimento económico e

avanços nos campos científico e tecnológico, evidencia con-

trastes económicos e sociais que se indicam exclusão de mui-

tos países e pessoas, que continuam imersos em situação de

subdesenvolvimento. Isto faz com que a pobreza permaneça

como uma realidade fática para bilhões de pessoas no globo,

o que limita a criação de condições sociais necessárias para a

saúde, com a geração de grandes iniquidades entre países e

mesmo dentro deles. Assim estão postas as condições para o

surgimento ou manutenção de assimetrias de poder na ordem

económica internacional, com consequentes limitações para

o desenvolvimento económico e social dos países, o que favo-

rece a transformação das desigualdades em iniquidades (15).

Em 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS), por do-

cumento de sua autoria denominado “O Financiamento dos

Sistemas de Saúde – o caminho para a cobertura universal” (2),

estreia o conceito de cobertura universal com base na necessi-

dade de uma reorientação na área da saúde em um momento

que se caracteriza pela recessão económica, custos crescentes

para a atenção à saúde, envelhecimento populacional, aumen-

to de enfermidades crônicas e novas tecnologias dispendiosas.

O informe induz ainda para a exploração de evidências en-

tre os países membros da OMS no que se refere ao modo de

obtenção de mecanismo alternativo de financiamento de seus

sistemas de saúde para atingir o que convencionou chamar de

cobertura universal.

Contudo, parece frágil a justificativa na qual se baseia o con-

ceito de cobertura universal, na medida em que responsabiliza

o indivíduo pelos custos oriundos da proteção à saúde.Tornar

majoritária a lógica do mercado e deslocar o Estado às som-

bras, ao papel coadjuvante, quiçá caritativo, é alterar a com-

preensão posta para direito humano, para direito fundamental

e para o direito à saúde.

No caso do Brasil, as experiências negativas acumuladas com o

atendimento oferecido por planos e seguros privados de saúde

aniquilam os fundamentos de que unicamente o mercado seja

capaz de resolver necessidades sociais (16).

Considerações finais

O êxito dos Estados que têm por princípio a solidariedade,

a preservação dos direitos humanos e sociais nem sempre se

esgota num modelo administrativo e governamental perfeito.

Por vezes, revela-se na consideração da realidade social, na

equidade, nos padrões de comportamento e nas interações

político-sociais.

Mesmo considerando que os direitos de bem-estar - dentre

eles a saúde - foram recentemente acrescidos ao campo dos

direitos humanos e sociais, e, portanto, não estão suficien-

temente encampados pelos Estados, isso não os exclui de

debates e de consequências que inter-relacionam o desem-

penho económico e a racionalidade pública.

Ainda que padeçam de críticas de institucionalização (os

direitos devem ser institucionalizados, ou não são direitos)

e críticas de exequibilidade (apesar dos melhores esforços,

talvez não seja possível efetivar o direito universal) é pre-

ciso, em prol dos sistemas universais, conhecer a tese das

obrigações imperfeitas, que indica que mesmo não havendo

alcance total do direito, ele não deixa de ser um direito

(17).

A adoção de condições para o acesso de direito humano

e social à saúde, que fundamenta o conceito de cobertura

universal, confronta a igualdade e a não discriminação en-

tre humanos, assevera as divisões oriundas do poder econó-

mico e rende-se à lógica de mercado.

A crescente demanda por ações e serviços de saúde acessí-

veis e de qualidade impõe aos Estados a tomada de decisões

políticas acertadas e que não esgarcem o já corroído tecido

social.