Table of Contents Table of Contents
Previous Page  54 / 108 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 54 / 108 Next Page
Page Background

S52

Artigo Original

Introdução

Observada a última década, constata-se o aumento dos deba-

tes sobre o conceito de cobertura universal de saúde, proposto

inicialmente, em 2005, pela Fundação Rockfeller e pela Orga-

nização Mundial de Saúde.

Essa afirmativa decorre dos debates havidos na reunião do G8

em Heiligendamm,Alemanha, em 2007 e do G20 em Cannes,

França, em 2011 e acabou por se consolidar em dezembro de

2012, quando o tema foi debatido na Assembleia Geral das

Nações Unidas e incorporado como um dos itens da Reso-

luçãoA/RES/67/81 – Saúde Global e Política Externa (1).

A proposta foi acolhida por mais de 90 países, dentre eles

países lusófonos, reunidos na assembleia em 12 de dezembro

de 2012 e que passou a definir Cobertura Sanitária Universal

(CSU) como o acesso de todos aos serviços de saúde dos quais

precisam as populações, sem acarretar à determinada classe de

usuários, risco de empobrecimento:

Declara

que a cobertura sanitária universal consiste em

cuidar para que o conjunto da população tenha acesso,

sem discriminação, aos

serviços públicos essen-

ciais

, definidos em nível nacional, para aquilo que é da

promoção da saúde, da prevenção, do tratamento e da

readaptação e aos

medicamentos de base

, seguros,

abordáveis, eficazes e de qualidade,

fazendo com que

o custo

não leve os usuários a dificuldades financeiras,

particularmente os pobres, as pessoas vulneráveis e as

camadas marginalizadas da população (2). (original sem

grifo).

Esse debate tem influência na forma pela qual os Estados dão

guarida ao direito à saúde. Num primeiro momento, a cober-

tura universal de saúde era conceito consubstanciado em sis-

temas públicos de acesso universal, o que é compatível com a

universalidade de acesso e a integralidade na atenção à saúde.

Essa compreensão desloca-se a partir das discussões apresenta-

das e o escopo de proteção estatal ao direito à saúde é alterado,

na medida em que restringe o caráter universal aos serviços

públicos essenciais e medicamentos de base e preocupa-se

com os riscos financeiros somente para a população hipossufi-

ciente, vulnerável ou marginalizada.

Em suma, a lógica conceitual é a da preocupação com a pro-

teção dos riscos financeiros e da busca de mecanismos alter-

nativos de financiamento setorial, em detrimento do direito à

saúde e do acesso universal e igualitário aos serviços de saúde,

que são a razão de ser dos sistemas públicos universais de saú-

de (3).

Países que dispõem de sistemas públicos universais de saúde,

tais como Canadá, Espanha, Reino Unido e Portugal, expe-

rimentaram mudanças, reformas e ajustes ao longo de suas

existências, com maior ou menor grau de garantia efetiva de

universalidade, integralidade e de financiamento público, sem,

entretanto, alterarem sua conceção de sistemas públicos de

acesso universal (4). Essa característica decorre especialmen-

te da presença marcante do princípio da solidariedade nessas

sociedades.

Para melhor compreender o dilema em questão, há que se

lançar um olhar sobre a evolução do Estado, do pensamento

político majoritário nas últimas décadas, do reconhecimento

do direito à saúde como humano e fundamental e por fim,

apresenta as críticas e potenciais riscos sobre a adoção do pa-

râmetro da cobertura universal.

1 - Da historicidade

O avanço da democracia liberal, que superou a forma de Esta-

do centrado nas funções de coerção e de guerra, fez com que

esse se tornasse mais proeminente na sociedade e mais omni-

presente nas estruturas da vida social, na esfera económica e

de mercado. Essa característica, que teve início especialmente

nos países de capitalismo avançado, propiciou uma forma de

pensamento que colocava o Estado como o gigante capaz de

proporcionar o crescimento económico, altos níveis de em-

prego e aumento de renda, juntamente com os benefícios da

previdência social, saúde, educação, transporte, segurança

pública e habitação. A esse Estado regulador e interventor,

denominou-se

Welfare State,

ou Estado Social, e foi aceite ma-

ciçamente pelos cidadãos e bem visto pelas principais elites ca-

pitalistas e burocratas, especialmente, em países que buscavam

a reconstrução de suas bases sociais, no pós-guerra.

No entanto, a elevada carga tributária requerida por este tipo

de Estado, agregada a fatores políticos e económicos, fez com

este modelo entrasse em crise, propiciando o crescimento de

uma nova forma de pensamento: o neoliberalismo. Diferente

do liberalismo clássico que se opunha ao Estado absolutista,

as mudanças sugeridas por este novo olhar, baseadas nos in-

teresses do mercado e da livre iniciativa, tinham como alvo o

Welfare State

.

A reforma neoliberal (5) passou a atuar em escala global e teve

impacto decisivo nos países em desenvolvimento. Seu recei-

tuário de disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, fim das

restrições ao investimento estrangeiro com privatizações das

estatais, aliado à desregulamentação das leis económicas e tra-

balhistas, fez com que os países endividados tivessem reduzida

sua autonomia na definição de políticas públicas.

No plano administrativo para a gestão das políticas públicas, o

modelo neoliberal propôs uma lógica de racionalidade econó-

mica do setor privado e de aplicação dos princípios da gestão

empresarial, de modo a substituir o paradigma da gestão po-

lítico-administrativa pelo paradigma empresarial de governo.

Assim, as teorias administrativas ou organizacionais passaram

a orientar as estruturas e funcionamento do Estado, como

foco na necessidade de adaptação a um ambiente em crescente

complexidade.Tomaram-se de empréstimo das empresas pri-

vadas

as normas que orientavam objetivos, metas e os meios

para atingi-los. Foram desenvolvidos estudos da ação governa-