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A n a i s d o I HM T
zado como veículo para buscar “delírios” escritos nos poucos
momentos de intimidade de seus pacientes.
Para a realização deste trabalho foram consultados sistemati-
camente 483 prontuários clínicos de pacientes de origem por-
tuguesa internados no Hospital do Juquery entre os anos de
1929 e 1939. Cada prontuário está dividido, de maneira geral,
em seis partes: identificação do paciente, contendo suas prin-
cipais informações pessoais como nome, nacionalidade, estado
civil, idade, profissão, data do internamento e, na maioria dos
casos, a data da saída; exame no ato de entrada, descrevendo
o estado geral do paciente, tanto físico como mental, no mo-
mento do internamento; exame somático, que avalia as condi-
ções do funcionamento do corpo do paciente: aparelhos respi-
ratório, circulatório, digestivo, excretor e reprodutor; exame
neurológico regista as condições de mobilidade, sensibilidade
e reflexos do paciente; exame psíquico, onde a vida do pacien-
te até o momento e durante o internamento era descrita, bem
como suas associações de ideias, delírios, alucinações, condi-
ções de memória (recordação para factos passados e presen-
tes), capacidade para o trabalho e sentimentos éticos (passan-
do pelo crivo comportamental do indivíduo diante dos “bons
costumes” da época); e o questionário, meio onde a anamnese
era colhida pelos médicos através de perguntas sobre a con-
duta do paciente antes do momento do internamento feitas
a parentes ou amigos. Sendo uma das perguntas presentes no
questionário: “quais são, no vosso pensar, as causas da doença
atual?”. Desta forma, a família aliava-se ao médico para a iden-
tificação da doença.
As informações presentes no exame psíquico compõem o ali-
cerce que fundamenta esta investigação. Baseado nos subsídios
da anamnese oferecidos no questionário, o médico estabelecia
uma narrativa da trajetória do paciente buscando destacar o
momento onde a doença mental tornara-se evidente e, por-
tanto, uma maneira de legitimar o internamento. A partir da
narração de aspetos da vida destes pacientes/imigrantes foi
possível perceber os percalços das múltiplas histórias de expe-
riências vividas por aqueles agentes históricos.
Determinados momentos da vida de um imigrante, ante-
riores ao momento do internamento, são revelados nas pá-
ginas dos prontuários, mas também informavam a respeito
das práticas da rotina institucional e o comportamento do
paciente no asilo, ou pelo menos o que os médicos conside-
ravam digno de nota [9]. Desta forma, o prontuário emerge
como importante fonte histórica acerca do paciente. No
entanto, como toda a fonte utilizada pelo historiador, os
prontuários contêm lacunas e a principal delas foi a carên-
cia de informações sobre a vida antes do internamento de
121 pacientes do Juquery (o que corresponde a 25% do
total de internados naquela instituição). Esta ausência de
informações explica-se pelo facto de que estes pacientes
foram conduzidos ao hospital pelas mãos da polícia, reti-
rados das ruas ou de cadeias, e nenhum familiar ou amigo
foi encontrado para responder o questionário, meio pelo
qual a anamnese médica se baseava. Nestes casos, o registo
sobre a vida destas pessoas começa no momento que entra-
ram no Juquery e as informações prestadas pelo próprio
paciente eram muitas vezes desacreditadas pelos médicos:
“comunica-se com os aviões que passam pelos céus da co-
lónia. Informações prestadas pelo paciente não são dignas
de confiança”. [10]
Discurso psiquiátrico
sobre a imigração em São Paulo
A maciça presença e a chegada de novos imigrantes na São
Paulo dos primeiros anos do século XX, cedo despertou a
atenção dos alienistas paulistas quanto aos males que uma
imigração não selecionada poderia provocar na organização
da cidade. Na sua tese de doutoramento um clínico do Asi-
lo do Juquery, Leopoldino Passos, argumentou que como
os italianos e os portugueses constituíam a principal parce-
la entre os estrangeiros do Estado, forneciam, também, os
maiores contingentes à loucura em São Paulo. O médico
foi ainda mais longe argumentando, com dados pouco pre-
cisos, que a frequência da loucura era superior nos estran-
geiros em comparação aos nacionais [11]:
De 2.500.000 brasileiros temos 1.492 loucos, isto é,
59,68 loucos para cem mil habitantes [...] A relação en-
tre loucos e habitantes portugueses deve ser muito maior do
que a dos brasileiros, mas, visto a Repartição de estatística
ignorar o número de portugueses, não podemos estabelecê-
-la.Temos no nosso estado 108 portugueses loucos e o nú-
mero de normais não deve ser superior a 100.000, e mes-
mo que atinja a esse número ainda teremos uma relaç
ão
muito superior à nossa, quase
o dobro.
Segundo Passos, alguns estrangeiros que estiveram inter-
nados na terra e obtiveram alguma melhora no seu quadro
clínico acabaram emigrando para o Brasil, movidos pelos
seus “delírios de ambição em fazer a América”.[11] Como
as autoridades portuárias brasileiras não impediam o seu
desembarque e o estado de São Paulo era o principal des-
tino dos estrangeiros seus estabelecimentos psiquiátricos
sofriam com a superlotação.
O principal alvo das suas críticas era o estrangeiro que se
dirigia para as cidades, em especial os portugueses. Estes
tinham, supostamente, as melhores
chances
de conseguir
uma vaga no Asilo do Juquery, em detrimento dos brasilei-
ros que enlouqueciam.
O hospício de Juquery serve mais aos estrangeiros do que aos
brasileiros. Isto é muito bonito, mas muito pouco patriótico. É
muito altruísmo lançar nossos patrícios nas cadeias para dar
seus lugares no hospício aos estrangeiros, e por maior que seja a
necessidade de recebermos imigrantes, nossa solicitude não pode
e nem deve chegar a esse ponto
[11].