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Introdução
A maciça imigração europeia ocorrida entre as décadas de
1880 e 1930 marcou indelevelmente a história do Brasil, em
especial a de São Paulo – a “metrópole do café” – que co-
nheceu um prodigioso crescimento urbano e industrial tor-
nando-se o principal polo de atração destes recém-chegados
ao país. A historiografia brasileira debruçou-se ao longo de
décadas sobre este tema ao focar as suas análises nos prin-
cipais grupos étnicos que aportaram nos portos nacionais,
nomeadamente, os italianos, os japoneses e os portugueses.
No entanto, trabalhos dedicados ao impacto das levas imi-
gratórias sobre a história da saúde pública, em especial sobre
a assistência psiquiátrica, são mais raros. É em torno deste
eixo temático que esta publicação visa oferecer uma contri-
buição historiográfica.
Com cerca de 64.000 habitantes em 1880 a cidade de São
Paulo passou a contar com 1.167.862 em 1937, um salto
demográfico de 1.700% em quase 60 anos [1]. A capital
dos paulistas deixava o seu passado de burgo provinciano
para trás para assumir o papel de metrópole moderna que
contava com serviços de iluminação e transporte públicos,
expansão da área citadina com divisão das funções urbanas
destinadas ao comércio e residências. Nos bairros operários
que se constituíam na capital predominavam os cortiços, a
água parada em poças e a ausência de condições básicas de
higiene, nestes locais, onde as epidemias proliferavam com
maior intensidade.
A construção de uma metrópole como São Paulo impunha
medidas sanitárias como o combate das epidemias e doenças
infetocontagiosas como a cólera, febre tifoide, tuberculose,
febre amarela e peste bubónica e a vacinação contra a raiva
e a varíola, para preservar a saúde de sua população, cada
vez maior e fornecedora de mão de obra [2]. Para além dos
combates epidémicos, as doenças do foro psiquiátrico cons-
tituíram um grave problema para a cidade que crescia e se
modernizava. A presença de pessoas com distúrbios mentais
e comportamento dissoluto preocupava as autoridades que
preconizavam uma solução para estes indivíduos: o interna-
mento e o isolamento em hospital psiquiátrico.
Em maio de 1898, após uma campanha capitaneada pelo
alienista Francisco Franco da Rocha, era inaugurado o Asilo
do Juquery concebido para ser um asilo-colónia onde os pa-
cientes pudessem trabalhar em ofícios agrícolas nas quintas
anexas ao hospital central [3]. Idealizado para ser um modelo
de assistência psiquiátrica, o hospital acompanhou o cresci-
mento vertiginoso de São Paulo – em meados da década de
1930 abrigava 3.156 pacientes [4] distribuídos pelos pavi-
lhões do hospital central e pelas colónias pertencentes ao
nosocómio – tornando-se o maior hospital psiquiátrico de
toda a América do Sul [5].
Esta investigação ocupou-se da presença portuguesa – um
significativo segmento da população imigrante na cidade de
São Paulo e um grupo étnico considerado privilegiado pe-
las autoridades brasileiras – no interior de uma importan-
te instituição psiquiátrica. Para isso, recorreu-se a consulta
sistemática de prontuários clínicos de pacientes da referida
nacionalidade produzidos no Hospital do Juquery durante a
década de 1930.
Para pensar sobre as fontes aqui utilizadas recorreu-se às
contribuições teóricas de Michel Foucault. De acordo com
o filósofo francês, a psiquiatria apresentou, a partir do li-
miar do século XIX, uma grande preocupação em construir
seu discurso pautado em pilares médicos e científicos. A
estratégia adotada foi desenvolver dois tipos de discurso: o
primeiro, classificatório ou nosológico, consistia em tratar a
loucura como uma série de doenças mentais, cada uma com
etiologia, sintomatologia e evolução próprias. O segundo
procurou desenvolver uma conceção anatomopatológica da
loucura ao tentar explicar a sua etiologia por correlativos
orgânicos [6].
Embora buscasse no conhecimento médico a legitimação do
seu saber, a psiquiatria utilizou métodos diferentes dos pro-
postos pela medicina. Esta fez o uso do diagnóstico diferencial,
ou seja, não reconhecendo apenas a existência da doença, mas
apontar a lesão orgânica responsável pela mesma.A psiquiatria
preocupava-se com um diagnóstico absoluto: existe ou não a
doença – loucura ou não loucura – ficando para o segundo
plano o estabelecimento da diferenciação nosográfica [6].
Outro problema para o emergente saber psiquiátrico foi a
questão do corpo. Como encontrar lesões orgânicas que ex-
plicassem a génese das doenças mentais? Com poucas ex-
ceções, a psiquiatria não conseguiu identificar no corpo do
indivíduo tais lesões. Desta forma, tratou de perseguir as
causas da doença nos antecedentes pessoais de seus pacien-
tes – uso do álcool e contato com a Sífilis – e, influenciada
pela teoria da degenerescência hereditária, nos antecedentes
familiares dos mesmos – pais alcoolistas ou parentes ante-
riormente internados [7].
Assim, buscava-se reunir o maior número de informações
possível do paciente por meio da anamnese – inquirições a
familiares e amigos do paciente sobre sua conduta antes do
internamento e da observação médica – para compor o in-
quérito que, ao lado das drogas e da hipnose, foi um dos
principais elementos utilizados pelo saber psiquiátrico para
fazer a loucura emergir e combater suas manifestações [6].
É sob esta ótica que o prontuário clínico – inquérito sobre o
paciente – deve ser entendido, um documento feito pelo e
para o saber médico [8].
Apesar de conter informações relevantes para o psiquiatra,
é possível perceber o discurso do paciente em alguns mo-
mentos no prontuário, a primeira forma é a transcrição de
partes de sua fala que o médico julga necessária para refor-
çar o diagnóstico imbuído, ou para ilustrar exemplos do seu
comportamento, a outra forma de ler a perspetiva dos doen-
tes é por meio de cartas. Este tipo de documento é bastante
valorizado por trabalhos historiográficos dedicados à questão
da institucionalização da loucura e também foi muito utili-
Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical