50
Mas, em terras de Piratininga, a imigração não despertou
apenas apreensões no que concerne à capacidade de assis-
tência à loucura do Estado, havia preocupações quanto à
formação das novas gerações de brasileiros. De acordo com
Franco da Rocha, afortunada era a Europa, pois a mesma
tinha um dispositivo de controlo sobre a proliferação de
homens considerados como degenerados: a emigração. O
alienista paulista via com apreensão a invasão de “levas de
degenerados” nos portos nacionais e os seus efeitos nocivos
para os futuros brasileiros [12].
No início da década de 1930 o debate ganhou capilaridade,
com destaque para o discurso psiquiátrico durante as ses-
sões da Assembleia Nacional Constituinte de 1933/1934.
Nelas, o então deputado da bancada “Por São Paulo unido”
e diretor do Hospital do Juquery, Antonio Carlos Pacheco
e Silva, proferiu o seguinte discurso [13]:
Por se não proceder à seleção individual temos permitido o
ingresso no nosso país de centenas e centenas de indivíduos
nefastos ao nosso convívio, que enchem os nossos asilos e peni-
tenciárias. (...) vê-se, assim, que num país imigratório, como é
o nosso,cumpre um exame atento,não só da escolha dos grupos
raciais, como também na rigorosa seleção individual dos imi-
grantes, visando beneficiar a raça em formação.
A forte influência eugénica sobre o pensamento científico do
período é notória no trecho apresentado. Os psiquiatras, ins-
pirados pelos preceitos da Higiene Mental, consideravam-se
os grandes responsáveis pela manutenção da saúde mental da
população brasileira e às autoridades, amparadas pelo saber
médico, caberia à seleção individual dos imigrantes, com o in-
tuito de impedir que seres “inaptos” lesassem a raça brasileira
“em formação” através do que chamavam de tara hereditária
de determinados imigrantes. Mas, uma política em prol da
seleção individual de estrangeiros não bastaria para resolver
o problema da imigração. Era necessário optar pela vinda de
grupos étnicos mais assimiláveis dos costumes brasileiros, para
desta forma evitar a formação de quistos raciais [13].
Assim, não bastava que o imigrante fosse saudável física e
mentalmente, era preciso que compartilhasse os valores
culturais com os brasileiros – foi pelo princípio da assimi-
lação que António Carlos Pacheco e Silva, por exemplo,
proferiu um discurso agressivo contra a imigração nipó-
nica, que, além disso, era considerada, segundo o psiquia-
tra, propensa ao suicídio [13].
De acordo com este raciocínio, eram os portugueses que
detinham a maior compatibilidade com a composição ét-
nica brasileira, base inerente da “nossa matriz” e, portanto,
imigrantes ideais no que tange às possibilidades de interação
com os brasileiros[14]. Pacheco e Silva orgulhava-se das suas
raízes lusitanas como expôs no seu discurso de posse, como
membro da Academia das Ciências de Lisboa, em 1954: “eu
posso orgulhar-me, assim como os meus filhos, de não ter
em minhas veias senão o generoso sangue lusitano”. [15]
Os laços de sangue, tecidos pelo passado histórico em co-
mum, uniam o Brasil a Portugal, mas também uniam São
Paulo, em particular, à terra lusa. O historiador Alfredo
Ellis Júnior reforçou a grande afinidade representada pela
mesma língua, a mesma religião e os mesmos nomes e
apelidos com o meio paulista como se o imigrante por-
tuguês fosse “oriundo desta terra”. [16] O autor também
enfatizou o papel do filho do imigrante português, nasci-
do em São Paulo, “é paulista até a alma e busca ávido todas
as ocasiões para prová-lo”. [16]
Mas o título de “imigrante ideal” conferido aos portugue-
ses não era compartilhado por todos, nem mesmo pelos
psiquiatras. Aliás, numa época em que privilegiava a here-
ditariedade, como uma importante chave explicativa para a
manifestação de transtornos mentais, no cenário brasileiro,
as comparações com os portugueses eram inevitáveis:
Incidência de esquizofrenias entre homens brasileiros é
maior que nas mulheres [88,39% contra 82,33%].Algo
semelhante é encontrado com os portugueses. [3,35%
contra 2,76%] Se levarmos em conta que na formação
da nossa população o sangue português mais ou menos
mesclado figura em elevadíssima proporção, não podemos
deixar de ver aí uma correlação de causa e efeito entre a
predominância da esquizofrenia entre os indivíduos bra-
sileiros do sexo masculino. Este facto é bastante curioso
e merece um estudo mais particularizado, mormente um
confronto com os dados já apurados em Portugal
[17].
O trecho acima de autoria de Edgar Pinto César (1901-
1974), diretor do Hospital do Juquery entre 1937 e
1944, e apresenta um estudo sobre as principais doen-
ças mentais que atingiam o estado de São Paulo a partir
da população internada no Juquery em 1943. Ainda de
acordo com os dados apresentados pelo autor, entre os
estrangeiros, os portugueses foram aqueles que apresen-
tavam a maior incidência de esquizofrénicos, com 52 ca-
sos. Em pesquisas realizadas pelo autor desta investigação
em Portugal sobre o movimento de entrada nos hospitais
psiquiátricos deste país, foram identificados dados que
permitiram uma comparação com a amostra selecionada
dos imigrantes portugueses internados no Juquery.
Em Portugal a ocorrência de esquizofrénicos também se
sobressaiu em comparação com outros diagnósticos, com
9.523 casos – 37% do total de internamentos no período.
É certo que os hospitais portugueses recebiam também
pacientes de outras nacionalidades, mas pelo que se pôde
apurar através da consulta do movimento de entradas
no maior hospital psiquiátrico de Portugal na altura – o
Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda (90% dos doen-
tes daquele hospital provinham do território continental
português e das ilhas adjacentes) [18], o que permite a
comparação com os dados obtidos sobre a população imi-
grante portuguesa internada em São Paulo.
Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical