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A n a i s d o I HM T
dência ou a realidade dos factos” [
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] e o megalomaníaco,
tipo particular de delirante, “um psicopata que diz ser mi-
lionário, que afirma ter vastas propriedades, quando não
passa de um pobre operário, sem vintém, é uma vítima de
ideias delirantes de grandeza” [35, 36].
O delírio foi percebido como a forma clássica da loucu-
ra, e esta, concebida essencialmente como uma vontade de
insurreição e ilimitada, a vontade do louco de afirmação
do delírio foi o principal alvo de combate do regime psi-
quiátrico. Desta forma, o psiquiatra posicionou-se como
um agente intensificador do real, impondo sua verdade –
detida por um poder sob o nome de ciência médica – sobre
o louco. Este poder pelo qual o real foi imposto à loucura
Michel Foucault designou por poder psiquiátrico.
Em contrapartida, a historiadora Laure Murat, conterrâ-
nea de Foucault, percebeu o delírio como um refúgio, com
a virtude da consolação. A loucura seria o último reduto
contra o horror de um destino sem saída [36]. Entre os
prontuários examinados nesta investigação, os chamados
delírios megalomaníacos acometiam com mais frequência
pacientes internados no Juquery como indigentes, ou seja,
aqueles que não possuíam recursos financeiros para arcar
com as despesas do internamento e, portanto, imigrantes
que não conseguiram atingir seus sonhos de riqueza. Nes-
ta ótica, os mais pobres reagiam diante da pobreza que os
cercava e diante do fiasco dos seus projetos de ascensão
social através de atitudes oníricas: o paciente exteriorizaria
seus desejos de riqueza e
status
social que foram frustrados
durante o processo imigratório.
No prontuário de um paciente chamado João está escrito:
“diz ter uma fortuna de mais de 500 contos e mandou fa-
zer ceroulas com bolsos apropriados para levá-la a Portu-
gal” [37]. Outras histórias também aparecem nas páginas dos
prontuários, como o homem que afirmava ouvir o espírito
de Pedro Álvares Cabral indicando-lhe onde havia ouro, a
mulher que antes do Brasil tentou a vida em França e nos Es-
tados Unidos e começou a exigir joias caras ao marido falido
e o jovem “dono” o edifício Martinelli – na altura o maior
arranha-céus de São Paulo – e da companhia britânica de
navegação a Royal Mail [38].
É importante ainda frisar que da mesma forma que um
doente não perde totalmente a saúde, o louco não perde to-
talmente a razão, existindo uma lógica dentro de seu discur-
so [39]. Quando determinado paciente afirmava ser o dono
edifício Martinelli não ignorava que sua posse remetia para
um sinal de riqueza e o homem que apregoava possuir uma
ceroula especial para carregar 500.000$000 sabia que com
tal fortuna para a época poderia retornar ao seu país e, re-
ceando ser roubado, pretendia manter o dinheiro consigo e
em lugar de difícil acesso.
Conclusões
Esta investigação evidenciou um esforço de perscrutação aos
arquivos de uma instituição psiquiátrica paulista em busca da
passagem, no interior de seus muros, de pacientes de origem
portuguesa – um segmento bastante expressivo de imigran-
tes que se instalaram em São Paulo. O objetivo perseguido
ao longo destas linhas foi apresentar outro lado do fenóme-
no imigratório para o Brasil, o lado daqueles diagnosticados
com alguma forma de doença mental.
A entrada maciça de recém-chegados a São Paulo provo-
cou inquietações da comunidade psiquiátrica paulista que,
influenciada pelas conceções eugénicas em voga na época,
advogou pela seleção individual dos candidatos à imigração;
além disso, conferiu maior importância à origem étnica do
estrangeiro visando favorecer o ingresso de indivíduos consi-
derados mais assimiláveis aos costumes brasileiros, sendo os
portugueses considerados os imigrantes preferenciais pelas
autoridades brasileiras.
Paralelamente, o Hospital do Juquery embora tenha sido
concebido como um símbolo de assistência psiquiátrica de
excelência para uma cidade que se modernizava e crescia
como São Paulo, tornava-se um triste “depósito humano”
abrigando os indesejados da cidade. Entre estes inúmeros
rostos ignorados, estavam os imigrantes que acreditavam
poder buscar uma vida melhor em uma cidade em franco
desenvolvimento, mas que tiveram seus sonhos de prosperi-
dade financeira e desejos de retorno frustrados.
Confidencialidade dos dados
O autor declara ter seguido os protocolos de seu centro de
trabalho acerca da publicação dos dados. No que concerne
aos prontuários de pacientes citados ao longo deste texto,
as leis brasileiras de respeito à identidade dos mesmos e a
inviolabilidade da intimidade de seus familiares foram rigo-
rosamente cumpridas. Para fins de citação, apenas o preno-
me do paciente seguido pelas iniciais do apelido do mesmo
foram apresentados.
Conflitos de interesse
O autor declara não ter qualquer conflito de interesse relati-
vamente ao presente artigo.
Fontes de Financiamento
O autor recebeu apoio financeiro para a realização desta in-
vestigação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo – FAPESP.