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A n a i s d o I HM T

dência ou a realidade dos factos” [

25

] e o megalomaníaco,

tipo particular de delirante, “um psicopata que diz ser mi-

lionário, que afirma ter vastas propriedades, quando não

passa de um pobre operário, sem vintém, é uma vítima de

ideias delirantes de grandeza” [35, 36].

O delírio foi percebido como a forma clássica da loucu-

ra, e esta, concebida essencialmente como uma vontade de

insurreição e ilimitada, a vontade do louco de afirmação

do delírio foi o principal alvo de combate do regime psi-

quiátrico. Desta forma, o psiquiatra posicionou-se como

um agente intensificador do real, impondo sua verdade –

detida por um poder sob o nome de ciência médica – sobre

o louco. Este poder pelo qual o real foi imposto à loucura

Michel Foucault designou por poder psiquiátrico.

Em contrapartida, a historiadora Laure Murat, conterrâ-

nea de Foucault, percebeu o delírio como um refúgio, com

a virtude da consolação. A loucura seria o último reduto

contra o horror de um destino sem saída [36]. Entre os

prontuários examinados nesta investigação, os chamados

delírios megalomaníacos acometiam com mais frequência

pacientes internados no Juquery como indigentes, ou seja,

aqueles que não possuíam recursos financeiros para arcar

com as despesas do internamento e, portanto, imigrantes

que não conseguiram atingir seus sonhos de riqueza. Nes-

ta ótica, os mais pobres reagiam diante da pobreza que os

cercava e diante do fiasco dos seus projetos de ascensão

social através de atitudes oníricas: o paciente exteriorizaria

seus desejos de riqueza e

status

social que foram frustrados

durante o processo imigratório.

No prontuário de um paciente chamado João está escrito:

“diz ter uma fortuna de mais de 500 contos e mandou fa-

zer ceroulas com bolsos apropriados para levá-la a Portu-

gal” [37]. Outras histórias também aparecem nas páginas dos

prontuários, como o homem que afirmava ouvir o espírito

de Pedro Álvares Cabral indicando-lhe onde havia ouro, a

mulher que antes do Brasil tentou a vida em França e nos Es-

tados Unidos e começou a exigir joias caras ao marido falido

e o jovem “dono” o edifício Martinelli – na altura o maior

arranha-céus de São Paulo – e da companhia britânica de

navegação a Royal Mail [38].

É importante ainda frisar que da mesma forma que um

doente não perde totalmente a saúde, o louco não perde to-

talmente a razão, existindo uma lógica dentro de seu discur-

so [39]. Quando determinado paciente afirmava ser o dono

edifício Martinelli não ignorava que sua posse remetia para

um sinal de riqueza e o homem que apregoava possuir uma

ceroula especial para carregar 500.000$000 sabia que com

tal fortuna para a época poderia retornar ao seu país e, re-

ceando ser roubado, pretendia manter o dinheiro consigo e

em lugar de difícil acesso.

Conclusões

Esta investigação evidenciou um esforço de perscrutação aos

arquivos de uma instituição psiquiátrica paulista em busca da

passagem, no interior de seus muros, de pacientes de origem

portuguesa – um segmento bastante expressivo de imigran-

tes que se instalaram em São Paulo. O objetivo perseguido

ao longo destas linhas foi apresentar outro lado do fenóme-

no imigratório para o Brasil, o lado daqueles diagnosticados

com alguma forma de doença mental.

A entrada maciça de recém-chegados a São Paulo provo-

cou inquietações da comunidade psiquiátrica paulista que,

influenciada pelas conceções eugénicas em voga na época,

advogou pela seleção individual dos candidatos à imigração;

além disso, conferiu maior importância à origem étnica do

estrangeiro visando favorecer o ingresso de indivíduos consi-

derados mais assimiláveis aos costumes brasileiros, sendo os

portugueses considerados os imigrantes preferenciais pelas

autoridades brasileiras.

Paralelamente, o Hospital do Juquery embora tenha sido

concebido como um símbolo de assistência psiquiátrica de

excelência para uma cidade que se modernizava e crescia

como São Paulo, tornava-se um triste “depósito humano”

abrigando os indesejados da cidade. Entre estes inúmeros

rostos ignorados, estavam os imigrantes que acreditavam

poder buscar uma vida melhor em uma cidade em franco

desenvolvimento, mas que tiveram seus sonhos de prosperi-

dade financeira e desejos de retorno frustrados.

Confidencialidade dos dados

O autor declara ter seguido os protocolos de seu centro de

trabalho acerca da publicação dos dados. No que concerne

aos prontuários de pacientes citados ao longo deste texto,

as leis brasileiras de respeito à identidade dos mesmos e a

inviolabilidade da intimidade de seus familiares foram rigo-

rosamente cumpridas. Para fins de citação, apenas o preno-

me do paciente seguido pelas iniciais do apelido do mesmo

foram apresentados.

Conflitos de interesse

O autor declara não ter qualquer conflito de interesse relati-

vamente ao presente artigo.

Fontes de Financiamento

O autor recebeu apoio financeiro para a realização desta in-

vestigação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de

São Paulo – FAPESP.