Table of Contents Table of Contents
Previous Page  34 / 114 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 34 / 114 Next Page
Page Background

34

dispositivo fotográfico [25] a fotografia passa a ser uma coisa

banal, uma “arte média” [26]. Coincidente com a fase a fase de

imposição efectiva de um projecto colonial europeu em Áfri-

ca, foi rapidamente integrado neste processo de categorização

e normatização, em que assentou o saber colonial [24].

A vigilância do dia-a-dia estava agora acessível a qualquer

um a qualquer hora, permitindo captar o instante e insti-

tuindo a recordação como uma das dimensões irreversíveis

de um novo quotidiano. Alimenta-se e constrói-se a opinião

pública que reclama retratos mais perto do vivido e em cima

do acontecimento. Neste sentido, desde o século XIX que a

fotografia foi convocada como instrumento de captação do

instante (como prova do “nós estivemos lá”, do “nós reali-

zámos”, do “que nós vimos e encontrámos” das expedições

científicas [27] e do “real”

distante dos espaços colonizados

[28], dando corpo a numerosas colecções fotográficas onde

fica plasmado um “enquadramento” das paisagens e popula-

ções exóticas do império e a sua divulgação junto das popu-

lações da metrópole [29] [20].

No caso da Guiné colonial, o Centro de Estudos da Guiné Por-

tuguesa criado no âmbito da implementação de um projecto

colonial após 1945, constitui-se como um caso particular no

âmbito da investigação científica e etnográfica colonial, graças

ao empenho do Governador Sarmento Rodrigues. O Centro

de Estudos surge como instituição de pesquisa local com o

propósito de fomentar e divulgar investigações nas mais di-

versas áreas científicas, implementando a política da “ocupa-

ção científica”

da colónia, como forma de contrariar o estado

de semiabandono e desinteresse da colónia, o que poderia ser

usado no contexto internacional, da preparação das indepen-

dências do pós-guerra.

Este Centro tinha como instrumento de divulgação o

Boletim

Cultural da Guiné Portuguesa

, que publicava a investigação de ca-

rácter histórico, etnográfico, cientifico, literário ou artístico,

produzido na colónia (com especial destaque para as etnogra-

fias locais produzidas pelos administradores coloniais). A pu-

blicação do Boletim

inicia-se em Janeiro de 1946 e termina em

Abril de 1973, com uma periodicidade de 4 números anuais e

com o propósito de ser uma “publicação facilmente aceitável

por uma maior massa de público, com o fito de popularizar os

problemas culturais da Guiné e não os deixar circunscritos a

um reduzido número de pessoas” [30].

No número inaugural, logo nas primeiras páginas, o Mi-

nistro das Colónias de então, Marcelo Caetano, traça a di-

mensão ideológica e política que vai nortear o alinhamento

e publicação do Boletim, contribuinte para uma “sistemática

ocupação científica da colónia” [32]. O Boletim constitui-se

no melhor espelho na nova política de colonização científica.

O Boletim através dos textos e das fotografias que ilustram

todos os volumes, constitui hoje uma preciosa fonte revela-

dora de um certo olhar colonial: o olhar científico, classifica-

tório, quantificador, descritor, mas também o olhar político

e propagandístico [32].

Uma publicação heterogénea pela diversidade de temas. Ar-

tigos sobre aspectos da MedicinaTropical eram regulares no

Boletim, prova que Portugal se preocupava com os aspectos

sanitários da colónia, com a saúde dos “indígenas” e dos colo-

nos ao mesmo tempo que pretendia dar o seu contributo no

desenvolvimento da ciência médica, i.é., Portugal para além

de “cumprir” com a Missão civilizadora participava no desen-

volvimento da ciência Tropical. O Boletim dá conta e exalta

ao longo das suas edições, da progressiva ocupação sanitária

da colónia em prol da defesa do bem-estar da população in-

dígena:- enquanto poderoso argumento de propaganda ex-

terna, que servia para comprovar e legitimar a capacidade

colonizadora da nação portuguesa, que servia, também no

plano interno, como estimulo ao movimento migratório da

mão-de-obra excedentária da metrópole para as colónias,

passo considerado decisivo para a concretização da ocupação

sistemática daquele território.

Os textos e colaboradores do Boletim eram sobretudo pes-

soas comprometidas com a prática colonial (funcionários

administrativos, mas também agrónomos, veterinários e

médicos entre outros) e como tal, os vários artigos tinham

implícito o princípio de “conhecer melhor, para melhor

ocupar e administrar”. Desde o início, os médicos da Mis-

são do Sono mantiveram uma relação estreita com o Centro

de Estudos, constituindo-se este como um espaço de socia-

bilidade política, cultural e científica. Por exemplo, Cruz

Ferreira, e outros elementos que se lhe seguiram, integra-

ram a Comissão Executiva do Centro de Estudos e encon-

traram nas páginas do Boletim, o espaço privilegiado para

divulgar as suas acções médicas de profilaxia e tratamento,

as diversas investigações desenvolvidas, os relatórios anuais

da Missão médica, muitas vezes publicados em simultâneo

nos

Anais do Instituto de Medicina Tropical

. Um dos núme-

ros do Boletim Cultural (o n.º 26 de 1952) é dedicado ao

1.º Congresso Nacional de Medicina Tropical, publicando

todas as comunicações apresentadas e resultantes da inves-

tigação médica levada a cabo pela Missão do Sono, ou em

colaboração. Tudo isto, enquadrado num exercício de di-

vulgação e propaganda da acção e como forma de exercício

sobre os quais se elaboram as políticas coloniais e se avalia

a sua aplicação.

A par de todo o

corpus

textual produzido pela “missão do

sono”, e publicado nas páginas do

Boletim Cultural

entre 1945

e 1973, salientamos o

corpus

fotográfico que acompanhava os

diversos artigos, um

corpus

expressivo do período colonial.

Para lá do texto e no esforço de transmitir e potenciar o

olhar científico, classificatório, quantificador, descritor, mas

também o olhar político e propagandístico o Boletim publica

fotografias de forma assídua e ideologicamente empenhada,

contribuindo para o processo de representação e imaginação

do Portugal metropolitano sobre este espaço.

Para compreender a fotografia enquanto objecto, é impres-

cindível contextualiza-la numa cultura discursiva e textual.

A fotografia é um objecto produzido num contexto espe-

cífico, por pessoas específicas, é um objecto que viaja e que

Artigo Original