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dispositivo fotográfico [25] a fotografia passa a ser uma coisa
banal, uma “arte média” [26]. Coincidente com a fase a fase de
imposição efectiva de um projecto colonial europeu em Áfri-
ca, foi rapidamente integrado neste processo de categorização
e normatização, em que assentou o saber colonial [24].
A vigilância do dia-a-dia estava agora acessível a qualquer
um a qualquer hora, permitindo captar o instante e insti-
tuindo a recordação como uma das dimensões irreversíveis
de um novo quotidiano. Alimenta-se e constrói-se a opinião
pública que reclama retratos mais perto do vivido e em cima
do acontecimento. Neste sentido, desde o século XIX que a
fotografia foi convocada como instrumento de captação do
instante (como prova do “nós estivemos lá”, do “nós reali-
zámos”, do “que nós vimos e encontrámos” das expedições
científicas [27] e do “real”
distante dos espaços colonizados
[28], dando corpo a numerosas colecções fotográficas onde
fica plasmado um “enquadramento” das paisagens e popula-
ções exóticas do império e a sua divulgação junto das popu-
lações da metrópole [29] [20].
No caso da Guiné colonial, o Centro de Estudos da Guiné Por-
tuguesa criado no âmbito da implementação de um projecto
colonial após 1945, constitui-se como um caso particular no
âmbito da investigação científica e etnográfica colonial, graças
ao empenho do Governador Sarmento Rodrigues. O Centro
de Estudos surge como instituição de pesquisa local com o
propósito de fomentar e divulgar investigações nas mais di-
versas áreas científicas, implementando a política da “ocupa-
ção científica”
da colónia, como forma de contrariar o estado
de semiabandono e desinteresse da colónia, o que poderia ser
usado no contexto internacional, da preparação das indepen-
dências do pós-guerra.
Este Centro tinha como instrumento de divulgação o
Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa
, que publicava a investigação de ca-
rácter histórico, etnográfico, cientifico, literário ou artístico,
produzido na colónia (com especial destaque para as etnogra-
fias locais produzidas pelos administradores coloniais). A pu-
blicação do Boletim
inicia-se em Janeiro de 1946 e termina em
Abril de 1973, com uma periodicidade de 4 números anuais e
com o propósito de ser uma “publicação facilmente aceitável
por uma maior massa de público, com o fito de popularizar os
problemas culturais da Guiné e não os deixar circunscritos a
um reduzido número de pessoas” [30].
No número inaugural, logo nas primeiras páginas, o Mi-
nistro das Colónias de então, Marcelo Caetano, traça a di-
mensão ideológica e política que vai nortear o alinhamento
e publicação do Boletim, contribuinte para uma “sistemática
ocupação científica da colónia” [32]. O Boletim constitui-se
no melhor espelho na nova política de colonização científica.
O Boletim através dos textos e das fotografias que ilustram
todos os volumes, constitui hoje uma preciosa fonte revela-
dora de um certo olhar colonial: o olhar científico, classifica-
tório, quantificador, descritor, mas também o olhar político
e propagandístico [32].
Uma publicação heterogénea pela diversidade de temas. Ar-
tigos sobre aspectos da MedicinaTropical eram regulares no
Boletim, prova que Portugal se preocupava com os aspectos
sanitários da colónia, com a saúde dos “indígenas” e dos colo-
nos ao mesmo tempo que pretendia dar o seu contributo no
desenvolvimento da ciência médica, i.é., Portugal para além
de “cumprir” com a Missão civilizadora participava no desen-
volvimento da ciência Tropical. O Boletim dá conta e exalta
ao longo das suas edições, da progressiva ocupação sanitária
da colónia em prol da defesa do bem-estar da população in-
dígena:- enquanto poderoso argumento de propaganda ex-
terna, que servia para comprovar e legitimar a capacidade
colonizadora da nação portuguesa, que servia, também no
plano interno, como estimulo ao movimento migratório da
mão-de-obra excedentária da metrópole para as colónias,
passo considerado decisivo para a concretização da ocupação
sistemática daquele território.
Os textos e colaboradores do Boletim eram sobretudo pes-
soas comprometidas com a prática colonial (funcionários
administrativos, mas também agrónomos, veterinários e
médicos entre outros) e como tal, os vários artigos tinham
implícito o princípio de “conhecer melhor, para melhor
ocupar e administrar”. Desde o início, os médicos da Mis-
são do Sono mantiveram uma relação estreita com o Centro
de Estudos, constituindo-se este como um espaço de socia-
bilidade política, cultural e científica. Por exemplo, Cruz
Ferreira, e outros elementos que se lhe seguiram, integra-
ram a Comissão Executiva do Centro de Estudos e encon-
traram nas páginas do Boletim, o espaço privilegiado para
divulgar as suas acções médicas de profilaxia e tratamento,
as diversas investigações desenvolvidas, os relatórios anuais
da Missão médica, muitas vezes publicados em simultâneo
nos
Anais do Instituto de Medicina Tropical
. Um dos núme-
ros do Boletim Cultural (o n.º 26 de 1952) é dedicado ao
1.º Congresso Nacional de Medicina Tropical, publicando
todas as comunicações apresentadas e resultantes da inves-
tigação médica levada a cabo pela Missão do Sono, ou em
colaboração. Tudo isto, enquadrado num exercício de di-
vulgação e propaganda da acção e como forma de exercício
sobre os quais se elaboram as políticas coloniais e se avalia
a sua aplicação.
A par de todo o
corpus
textual produzido pela “missão do
sono”, e publicado nas páginas do
Boletim Cultural
entre 1945
e 1973, salientamos o
corpus
fotográfico que acompanhava os
diversos artigos, um
corpus
expressivo do período colonial.
Para lá do texto e no esforço de transmitir e potenciar o
olhar científico, classificatório, quantificador, descritor, mas
também o olhar político e propagandístico o Boletim publica
fotografias de forma assídua e ideologicamente empenhada,
contribuindo para o processo de representação e imaginação
do Portugal metropolitano sobre este espaço.
Para compreender a fotografia enquanto objecto, é impres-
cindível contextualiza-la numa cultura discursiva e textual.
A fotografia é um objecto produzido num contexto espe-
cífico, por pessoas específicas, é um objecto que viaja e que
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