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1.Ocupaçãocientífica e imagéticada guinéportuguesa

O projecto de “Ocupação Científica”

da Guiné, impulsiona-

do a partir de 1945 e enquadrado num contexto de instaura-

ção de uma nova política colonial, corresponde à instalação

efectiva da organização administrativa e militar e ao desen-

volvimento das estruturas produtivas da colónia. A Guiné

representava uma colónia de fraco interesse económico,

apenas justificada por argumentos de natureza nacionalista e

pela sua localização geo-estratégica. Séculos de contactos co-

merciais com as populações costeiras, consubstanciaram-se

na edificação de duas pequenas fortalezas (Cacheu e Bissau)

e na constituição de núcleos comerciais em Cacheu, Bissau

e Bolama. A colonização do território iniciou-se em finais

do séc. XIX

1

, com a efectiva ocupação empreendida já em

pleno séc. XX, entre 1913 e 1936, através das campanhas de

“pacificação” e de submissão das populações nativas à nova

autoridade [1]. Neste período, a preocupação maior assen-

tou no controlo das populações, lançando-se ao mesmo tem-

po as bases de uma administração local, sem desenvolver as

infraestruturas nos meios rurais. Após a II Guerra Mundial,

a Guiné enfrenta uma verdadeira política de colonização,

motivada pela nova conjectura internacional, que traz conse-

quências para a política colonial portuguesa.

Após 1945 as Nações Unidas dirigem as suas atenções para

a questão fundamental do colonialismo, antevendo o dese-

nho de uma nova ordem mundial. A

Carta

da Organização

das Nações Unidas (ONU) conferia o direito dos povos à

autodeterminação, o que motivou Portugal a reformular a

configuração administrativa e económica da sua política co-

lonial. Portugal reafirmava a sua política colonial como um

dos pilares ideológicos do regime e a produção e mercados

coloniais, como fundamentos económicos. Portugal procu-

rou melhorar as suas expectativas re-embalando o seu impe-

rialismo, redefinindo a sua “missão civilizadora”.

Houve a transição de uma ideologia colonial, assente na

apologia da raça e no dever histórico de colonizar, para uma

ideologia de teor luso-tropicalista [2] [3]. Uma das verten-

tes desta nova fase do colonialismo português consistiu no

desenvolvimento da “ocupação científica” dos espaços colo-

niais, através da realização de missões científicas e da criação

de instituições de pesquisa.A investigação científica colonial,

enquanto valiosa arma política, configurou-se como modo

de demonstração que Portugal ocupava efectivamente os

territórios, demonstrando-o de forma científica. Para além

da divulgação interna e externa, dos supostos benefícios da

colonização, o governo empenhou-se numa lógica de melhor

conhecer para melhor controlar e dominar as populações e ter-

ritórios administrados. Diversas áreas científicas concorreram

como instrumentos e argumentos essenciais da “missão” do Es-

tado colonial, destacando-se a medicina [4]. A investigação e a

prática médica, configuraram a colónia como num verdadeiro

laboratório.

A afirmação da Medicina europeia no espaço colonial foi fun-

damental, enquanto instrumento que visava preservar a saúde

do colono europeu e ao mesmo tempo promover e assegurar a

melhoria das condições sanitárias das populações locais, legiti-

mando desse modo, a sua presença e acção aos olhos da comu-

nidade internacional.A biomedicina emergiu nesta lógica como

instrumento e estratégia coloniais

.

Amedicina como ferramenta

científica, auxiliar no processo e sucesso coloniais, como um sa-

ber de instrumentalização com o propósito de ordenar, disci-

plinar e domesticar os comportamentos dos povos colonizados

[4].As prioridades em saúde eram claras para as administrações

coloniais, devendo responder aos imperativos económicos e as-

segurar a defesa duma estratégia de dominação colonial.

As missões científicas programadas pela Escola de MedicinaTro-

pical contribuíram para o enriquecimento do discurso colonial

que se apoiou na medicina tropical como ferramenta ideológi-

ca do Império e da colonização [5].A medicina tropical, surgiu

como elemento da “missão civilizadora” e argumento de defesa

do colonialismo, perante a contestação internacional, a partir da

década de 1950. O

Estado Novo

na construção da sua narrativa,

exibiu a medicina como elemento fundamental e justificativo

da sua presença em África e da “missão civilizadora”: a medicina

como propaganda (para consumo interno e externo).

O saber colonial como um saber-poder, na procura da constru-

ção de um argumento pertinente, justificativo, da política colo-

nial para divulgar interna e externamente. Nesta linha emergiu

o estudo da doença do sono, enquanto grave problema colonial

que importava debelar, que se estudava e que se pretendia con-

trolar, justificando desse modo a presença do estado colonial.

Controlar e tratar a doença do sono transitou de uma preocupa-

ção de protecção da mão-de-obra indígena (enquanto mais-valia

económica) para uma preocupação fundamental da missão civi-

lizadora do estado colonial.

A saúde pública nas colónias, influenciada pelo paradigma pas-

teuriano, constituiu-se na base da luta contra algumas doenças

tropicais, especialmente a doença do sono e a malária, através de

missões médicas organizadas [5].A doença do sono era um pro-

blema de saúde pública que também atingia os espaços coloniais

de Portugal e não um exclusivo dos outros impérios coloniais

europeus. SãoTomé e Príncipe,Angola, Moçambique e Guiné,

eram igualmente atingidos e eram alvo da atenção e preocupa-

ção da autoridade colonial. Assim, focamos neste artigo a mis-

são de estudo e combate da doença do sono, enquanto missão

permanente na Guiné, tutelada e organizada a partir de uma

instituição da metrópole - o Instituto de Medicina Tropical de

Lisboa

,

entre 1945 e 1974.

1.1.Ocupação científica: caso da missão do sono

A doença do sono foi o flagelo que mais atingiu as popula-

ções da África tropical no século XIX e no primeiro quartel

do século XX, assumindo-se como responsável pelo despo-

voamento e decadência de extensas regiões, até então fér-

teis e prósperas. A carência de mão-de-obra e o desejo de

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