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as duas vertentes da medicina experimental cristalizaram-se em

instituições independentes: por um lado, voltadas para zonas ru-

rais e urbanas do continente português – o Instituto Central de

Higiene; por outro, dedicadas à medicina tropical, na interface da

metrópole com os territórios ultramarinos: a Escola de Medicina

Tropical de Lisboa e o Instituto de MedicinaTropical.

O nó górdio da saúde pública brasileira era a febre amarela, cuja

incidência crescia emsincronia como aumento do fluxo crescente

de imigrantes para as cidades portuárias.Nos anos 1890, a doença

irrompeu em várias zonas interioranas, em muitas pela primei-

ra vez. Domingos Freire, catedrático de química na Faculdade

de Medicina do Rio de Janeiro, anunciara em 1879 a descoberta

do suposto agente da febre amarela, o

Cryptococcus xanthogenicus

,

nome dado por analogia com a bactéria do antraz, cujos esporos

infecciosos acabavam de ser descobertos por Koch no solo onde

eramenterrados os animais contaminados. Freire tambémencon-

trou esporos do micróbio da febre amarela nas sepulturas de suas

vítimas. A receptividade que teve a vacina por ele desenvolvida

em 1883 deveu-se ao medo que a doença inspirava e ao apoio

dos republicanos e abolicionistas aos quais o médico carioca era

ligado [55].Outras bactérias e diversos fungos foram relacionados

à febre amarela nos anos 1880, no Brasil, no México, em Cuba e

em outros lugares afetados pela doença. Nos anos 1890, bacilos

competiriampela condição de agente causal dela,combase emhi-

pótese de Koch de que tinha analogias com o cólera, uma vez que

o principal sintoma da febre amarela, o ‘vômito negro’, também

se localizava no intestino.

O relativo consenso fundamentado na teoria miasmática a respeito

do que se devia fazer para higienizar portos como o Rio de Janeiro

deu lugar a candentes polêmicas, até que um deslocamento radical

na abordagem da doença levou nova geração de bacteriologistas

ao proscênio da saúde pública, sob a liderança de Oswaldo Cruz.

Dois episódios foram fundamentais para isso: a formulação pelo

cubano Carlos Juan Finlay da hipótese da transmissão por mos-

quitos, em 1880-81, e sua demonstração pela equipe norte-

-americana chefiada porWalter Reed, em 1900.Ronald Ross e os

italianos Giovanni Battista Grassi,Amico Bignami e Giuseppe Bas-

tinelli acabavamde desvendar o ciclo do

Plasmodium

emmosquitos

do gênero

Culex

(malária das aves) e

Anopheles

(malária humana).

Aquele feito viabilizou na Inglaterra o projeto que defendia Man-

son de investir-se na formação de médicos habilitados a lidar com

o que chamou de “medicina tropical”.

Muitos médicos brasileiros insurgir-se-iam contra este conceito

que parecia perpetuar os estigmas de insalubridade e atraso ori-

ginados quando as teorias médicas que atribuíam doenças infec-

ciosas aos climas quentes e seus miasmas serviram à produção de

ideologias eurocêntricas sobre a inviabilidade da ‘civilização’ nos

trópicos. Para Manson e seus seguidores, o clima e outros fatores

ambientais eram relevantes na medida em que influíam sobre as

condições de vida e reprodução dos parasitas patogênicos e seus

hospedeiros. A expressão “medicina tropical” passou a ser usada

para delimitar um território de investigação que requeria forma-

ção diferente daquela proporcionada pelas Faculdades de Medi-

cina: era preciso combinar os conhecimentos tradicionalmente

veiculados aí ao novo ferramental da zoologia e microbiologia.

Em 1898 começou a funcionar a Liverpool School of Tropical

Diseases e, no ano seguinte, a London School ofTropical Medici-

ne; 1900, em Hamburgo, foi inaugurado o Instituto de Doenças

Marítimas eTropicais. Em junho desse ano, dois integrantes da

Escola de Liverpool rumaram para a Amazônia para investigar a

febre amarela, levando a hipótese de sua transmissão por mos-

quito [ 56]. Em agosto, logo após a passagem deles por Havana,

Lazear iniciou experiências com mosquitos fornecidos por Fin-

lay, enquanto Carrol eAgramonte prosseguiam os estudos (então

prioritários) sobre o suposto bacilo da febre amarela. Em setem-

bro, Lazear faleceu em conseqüência de uma picada acidental.

Às pressas, Reed iniciou experiências melhor controladas para

provar que o mosquito - depois classificado como

Stegomyia

fas-

ciata (atual

Aedes aegypti

) - era o hospedeiro do “parasito” da febre

amarela; que o ar não transmitia a doença; e os fomites não eram

contagiosos [55,57]

Os resultados foram apresentados ao 3º Congresso Panamerica-

no, emHavana, em fevereiro de 1901.As experiências dos norte-

-americanos foram reencenadas na cidade de São Paulo por Emí-

lio Ribas, chefe do Serviço Sanitário do Estado, e Adolpho Lutz,

diretor de seu Instituto Bacteriológico, para neutralizar as críticas

dos médicos alinhados comos bacilos, fungos e algas incriminados

como agentes da febre amarela .As conclusões da comissão Reed

estavam ainda

sub judice

. Em 1904, uma missão alemã, organiza-

da pelo Instituto de Hamburgo, esteve no Rio de Janeiro onde já

se encontravam três pesquisadores do Instituto Pasteur de Paris:

Émile Marchoux, Paul-Louis Simond eAlexandreTourelli Salim-

beni. Durante o tempo que permaneceram na capital brasileira,

franceses e alemães puderam observar os fatos biológicos e sociais

produzidos na cidade que serviu como primeiro laboratório a céu

aberto para o teste de uma campanha calcada na teoria culicidiana,

sob condições que não eram as da ocupação militar, e sem sanea-

mento prévio que turvasse os resultados [55].

Ao ser eleito presidente da República, em 15 de novembro de

1902, Francisco de Paula RodriguesAlves divulgara umManifes-

to à Nação, em que qualificava o saneamento do Rio de Janeiro

como sua principal preocupação. Oswaldo Cruz assumiu em se-

guida a diretoria-geral de Saúde Pública (DGSP) com a missão de

combater a febre-amarela, a peste bubônica e a varíola, ao mesmo

tempo em que os engenheiros comandavam uma ofensiva contra

muitos dos alvos que os sanitaristas, agora, julgavam irrelevantes

ou mesmo contraproducentes para suas campanhas. A peste foi

subjugada; a febre amarela desapareceu do Rio de Janeiro, mas

só momentaneamente; a Revolta daVacina neutralizou a ofensiva

contra a varíola que, em 1908, matou 6.400 pessoas na capital

brasileira [58,59].

Por volta de 1910, estavam edificados os prédios e avenidas pro-

jetados para transformar aquela cidade colonial numa metrópo-

le parecida com a Paris de Haussmann. Na distante fazenda de

Manguinhos, erguia-se agora o complexo dominado pelo castelo

mourisco, com sofisticados laboratórios. Para a metamorfose do

laboratório soroterápico no instituto batizado com o nome de

Oswaldo Cruz foi importante a medalha de ouro conquistada

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