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A n a i s d o I HM T

‘trópicos’ cobiçados pelas políticas coloniais.

Da exploração dos parasitos relacionados a doenças participou,no

Brasil, outra cria da ciência alemã,Adolpho Lutz [52]. Seus pais,

de uma das famílias mais tradicionais de Berna, emigraram para a

capital brasileira em dezembro de 1849, justo quando irrompia

aí a primeira epidemia de febre amarela, de efeitos devastadores.

Nascido no Rio de Janeiro, em 1855, aos 19 anos Lutz iniciou

os estudos superiores em Berna.As universidades alemãs, suíço e

austro-germânicas formavam uma mesma comunidade de apren-

dizado, o que explica a mobilidade acadêmica de Lutz e de seus

professores. Na Universidade de Leipzig, Lutz testemunhou, em

1878, a visita de Koch a dois professores, Julius Cohnheim e Carl

Weigert, para exibir-lhes as primeiras preparações do

Bacillus an-

thracis

, colorido pelo azul de metileno. Em Leipzig, Lutz estudou

também com Karl Georg Friedrich Rudolf Leuckart, que teria

grande influência sobre os trabalhos feitos depois no Brasil, para

onde regressou em fins de 1881.

Residiu por alguns anos (1882 a 1885) num centro cafeeiro do

interior do estado de São Paulo, Limeira.Ao chegar lá, Lutz en-

viou nota a

Correspondezblatt für Schweizer Ärtze

[Boletimde Corres-

pondência para Médicos Suíços] relacionando temas para futuros

artigos, sobretudo os helmintos que parasitavam sua clientela e os

animais com os quais convivia [52].

O

Ancylostoma duodenale

ganhara muita projeção durante a cons-

trução do túnel e da ferrovia de São Gotardo, que em 1880 li-

gou Itália e Suíça. Dialogando com autores alemães e italianos,

Lutz publicou trabalhos nas

Sammlung KlinischerVorträge

[Lições de

clínica médica] editadas por Richard vonVolkmann, em Leipzig.

Lutz investigou o ciclo de vida do helminto desde o ovo, elimi-

nado com as fezes do hospedeiro, confirmando o controvertido

hematofagismo do verme adulto. Um particularidade por ele

descrita serviria mais tarde para diferenciar a variante comum no

Novo Mundo (

Necator americanus

) daquela predominante na re-

gião euro-asiática [53].

Em C

entralblatt für Klinische Medicin

e no

Deutsche Zeitschrift für

Thiermedizin

(1885), Lutz publicou trabalhos sobre outros vermes

correntes no homem e em animais domésticos, principalmente o

porco.A partir de 1887, seus artigos foram veiculados sobretudo

pelo

Centralblatt für Bakterologie

und Parasitenkunde

[Folha central

para a bacteriologia e a parasitologia] fundado em Jena por Leu-

ckart, Friedrich Löfller e Oscar Uhlworm [53].

Os artigos de Lutz sobre ancilostomíase, estrongiloidíase, ascari-

díase, teníase, oxiuríase e tricocefalose mostram que estava em

fina sintonia com os helmintologistas atuantes na Europa, Orien-

te, América e África. Descortinava-se a eles vasto horizonte de

incógnitas. Diziam respeito, primeiramente, ao mapeamento clí-

nico e anatomopatológico de enfermidades conhecidas por con-

fusas denominações locais, o que tornava difícil demonstrar sua

sinonímia ou diversidade.Outro desafio consistia emrelacionar os

complexos ciclos evolutivos dos helmintos tanto às peculiaridades

comportamentais e biológicas das populações humanas e animais

que parasitavam, como às singularidades dos meios geográficos

emque transcorriamestes ciclos.Outras questões diziamrespeito

à sistemática dos grupos continuamente enriquecidos com ver-

mes descritos em diversas partes do mundo, às interações entre

diferentes vermes nos mesmos ambientes e hospedeiros, aos mé-

todos diagnósticos e aos recursos terapêuticos baseados nas floras

nativas ou nos produtos da indústria química européia.

Nesse mesmo período, Lutz engajou-se em outra rede, a dos

der-

matopathologen

que atuavam nas cidades da Alemanha, Áustria e

Europa Central. “Correspondente” na América do Sul do

Monat-

shefte für praktische Dermatologie

, primeiro periódico da especialida-

de na Alemanha, Lutz traduziu para o alemão artigos de autores

brasileiros. Continuou a publicar na Alemanha enquanto traba-

lhou no leprosário de Molokai, no Havaí, e em São Francisco, na

Califórnia, até regressar outra vez a São Paulo, onde teria início a

segunda fase de sua trajetória profissional [52].

A primeira, como vimos, caracteriza-se por muitos deslocamen-

tos geográficos e cognitivos. Lutz é outro médico-viajante que

percorre aquele sistema de relações centro-periferia em sentido

diferente do tomado porWucherer. Deixa um rastro de estudos

sobre doenças parasitárias e infecciosas que circulam por rede

mais densa de periódicos, cada vez mais especializados, inclusive

no Brasil.

Em 1893 Lutz assumiu a chefia de um Instituto Bacteriológico

que acabava de ser fundado em São Paulo.Aquela década foi pró-

diga em conflitos envolvendo a identificação e, por conseqüência,

a profilaxia e o tratamento de doenças no Sudeste do Brasil, aba-

lado pelo colapso da escravidão, a enxurrada imigratória, as tur-

bulências políticas e econômicas decorrentes de nossa revolução

industrial ‘retardatária’ e da proclamação da República. Os diag-

nósticos da equipe de Lutz e de alguns médicos mais jovens noRio

de Janeiro—destacamos OswaldoCruz, Francisco Fajardo,Cha-

pot Prévost e alguns outros recém-formados—estavam calçados

em provas laboratoriais inacessíveis à maioria de seus pares. Os

conflitos protagonizados por eles tornaram ainda mais beligerante

a consolidação da República oligárquica brasileira.

Em1893,o cólera disseminou-se pelo vale do rio Paraíba do Sul,a

espinha dorsal da economia cafeeira.Os adversários dos bacterio-

logistas do Rio e de São Paulo contestaram ferozmente seus lau-

dos. Invocavam a autoridade de Max von Pettenkofer, respeitado

nome da saúde pública alemã e, na Europa, principal adversário

de Koch, o descobridor do

Vibrio comma

.Outra questão polêmica

foi a febre tifóide, cujos casos eram diagnosticados como febres

adjetivadas como ‘tifo-maláricas’, ‘remitentes’ e simplesmente

“paulistas”. O comércio internacional e os fluxos migratórios vi-

nham espalhando a peste bubônica pelo mundo. Em 1899, em

vapores lotados de emigrantes portugueses, a peste migrou do

Porto para Santos. A dificuldade de obter o soro de Yersin e a

vacina de Haffkine, recém-desenvolvidos, levou o governo pau-

lista a criar um laboratório para fabricá-los na Fazenda Butantan

[54]. Recém-chegado de Paris, onde se especializara no Instituto

Pasteur, Oswaldo Cruz ficou encarregado da direção do Institu-

to Soroterápico Federal, criado no Rio de Janeiro, na fazenda de

Manguinhos.

Enquanto no Brasil microbiologia e medicina tropical nasceram

institucionalmente amalgamadas, tendo como alvos, a princípio,

algumas capitais e logo o vasto território nacional, em Portugal