18
nhecimento médico na teia de relações de Portugal com África
e com os restantes países europeus reveste-se de particular im-
portância no âmbito das relações internacionais que envolvem
a ciência, a medicina e a política, determinantes para a conso-
lidação desta nova área disciplinar [28]. Interessa-nos, por isso,
estabelecer um padrão de reflexão que contemple em paralelo a
história institucional que serviu de suporte ao estabelecimento
desta rede de interacções que envolveu o Estado, os actores e as
doenças no espaço metropolitano, colonial e europeu. Propo-
mos assim um percurso metodológico que ancore na emergên-
cia e consolidação disciplinar à qual se associaram as diferentes
instituições que se sucederam até à criação do actual Instituto de
Higiene e Medicina Tropical, em 1973, embora com principal
enfoque ma primeira instituição, melhor estudada até ao pre-
sente: a Escola de MedicinaTropical (1902-1935), fundada por
Carta de Lei, de 24 de Abril de 1902; o Instituto de Medicina
Tropical (1935-1966), estabelecido pela publicação da Lei n.º
1920 de 29 de Maio de 1935; a Escola Nacional de Saúde Públi-
ca e Medicina Tropical (1967-1972), instituída por decreto-lei
n.º 47.102, de 16 de Julho de 1966. Faremos assim uma aná-
lise das três instituições não tanto do ponto de vista institucional
mas antes, da sua dinâmica protagonizada pelos investigadores,
por comparação com as opções das outras instituições europeias
congéneres, vocacionadas para o estudo das doenças tropicais, uti-
lizando os espaços coloniais como laboratórios vivos de investiga-
ção.Neste contexto serão variáveis de enquadramento teórico, as
problemáticas prioritárias da era Manson, de pendor pasteuriano,
evidenciando o poder do laboratório e do império, e, a era da saú-
de pública, na qual predominavam as redes de colaboração inter-
nacionais, obrigando a uma integração efectiva dos vários actores
e instituições que contribuíram para a consolidação da medicina
tropical como área de conhecimento autónoma.
O exercício da medicina emÁfrica no início do século XIX per-
tencia ao domínio da medicina militar, sem diferenciação de pa-
tologias menos conhecidas dos europeus. Foi-se sucessivamente
distanciando para dar lugar a uma especialidade médica, a me-
dicina tropical, configurada com a corrida para África de uma
comunidade médica europeia, que protagonizaria assim uma
migração intelectual de práticas assentes na investigação expe-
rimental e na valorização do laboratório a partir dos resultados
obtidos por Patrick Manson (1844-1922) e Alphonse Laveran
(1845-1922) e Ronald Ross (1857–1932), capazes de gerarem
um novo ciclo de conhecimento numa matriz cognitiva distinta
para o esclarecimento das variáveis que poderiam resultar no
combate e extermínio dos colonizadores e dos indígenas nos
trópicos (paludismo, doença do sono, febre amarela, etc).
A Conferência de Berlim exigia de Portugal uma atenção par-
ticular pela defesa das fronteiras do território em África, e so-
bretudo a partir do ultimato de 1890, obrigando a país a consi-
derar as várias variáveis para a ocupação efectiva desse espaço,
no qual a medicina viria a ocupar um lugar de destaque. Se por
um lado, o número de baixas no território causadas por doenças
associadas à climatização nas regiões tropicais [31] era muito su-
perior às baixas em cenário de guerra, dificultando a fixação dos
europeus, não era menos importante o flagelo que as doenças
tropicais provocavam na população indígena [21,24], diminuin-
do assim a possibilidade do recurso à mão-de-obra local para
tornar viável a rentabilidade dos territórios ocupados. Portugal
iria assim participar dos ideais de colonização europeus tentan-
do defender as suas possessões, tendo por base o conhecimento
médico especializado, como se defendia em 1902, na Câmara
dos Deputados [32]:
Se Portugal deve viver pelas suas colonias e para as suas
colonias, não só como legitima aspiração de grandeza,
mas pelo dever de continuar a sua missão civilisadora, não
pode, não deve esquecer-se de que, possuindo cêrca de
duzentos milhões de hectares de terras espalhadas pela
zona intertropical, lhe corre a obrigação de não retardar
para as suas colonias o que para o seu engrandecimento
pode concorrer. Os nossos medicos, como acontece aos
educados nas escolas inglesas, allemãs, belgas, hollande-
sas, francesas e americanas, apesar da superior illustração
dos professores, ao acabarem os seus cursos, ignoram as
condições de vida nos climas quentes, tanto pelo que res-
peita aos individuos e á sua acclimação, como aos conhe-
cimentos geraes das aguas, do solo, da alimentação e do
mais que é preciso conhecer para a execução productiva
da clinica no pais, que não é aquelle para que foram edu-
cados e preparados.Desconhecendo ainda a pathologia e a
hygiene tropicaes, a politica sanitaria maritima, a adminis-
tração hospitalar, não podem os nossos medicos exercer
com proveito dos habitantes dos tropicos a sua profissão.
Etiologia
Profilaxia
Campanhas de
erradicação
Vectores
Higiene
Tradições
(culturais e
científicas)
Recursos
Financeiros
Intercâmbio
científico
Climatologia
Fig. 1
– Quadro de relações estabelecidas no domínio da medicina tropi-
cal, como área de conhecimento independente.
Artigo Original