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1. Medicina e Império

O presente texto pretende introduzir o tema deste pequeno

curso num contexto teórico mais vasto que, seguindo as gran-

des tendências internacionais, reconhece o importante papel da

ciência, tecnologia e medicina na construção da Europa colonial

dos séculos XIX e XX.

O nosso objectivo é propor-vos, por um lado, olhar para a apro-

priação dos territórios imperiais através de uma lente focada

na ciência, na tecnologia e na medicina, e, por outro, perceber

como é que este tipo de saberes e práticas foram reutilizados nas

metrópoles, num processo dual de europeização do mundo e

provincialização da Europa [1, 2].

O ponto de partida é o reconhecimento de que a Europa tem

uma estrutura técnico-científica, que faz parte integrante da

sua própria identidade. Essa visão de mundo baseada na trilogia

ciência-tecnologia-progresso surgiu no Renascimento e incorpo-

rou definitivamente o DNA do pensamento europeu no século

XVIII, no período do Iluminismo, construindo uma visão de um

mundo quantitativo e quantificável, compreendido e dominado

através de fórmulas matemáticas.As palavras,mesmo que apócri-

fas, atribuídas a Laplace quando apresentou o

Traité du Mécanique

Céleste

(1799-1825) a Napoleão e foi por ele questionado sobre

o não ter referido Deus na sua argumentação, são bem exem-

plificativas da mundividência das Luzes: “Je n’avais pas besoin de

cette hypothèse-là.” Mais tarde, a propósito do comentário de

Lagrange a estas palavras, Laplace reforça a sua visão de uma ci-

ência de predição: “Cette hypothèse, Sire, explique en effet tout,

mais ne permet de prédire rien. En tant que savant, je me dois de

vous fournir des travaux permettant des prédictions”

1

.

Esta omnipresença da ciência e da tecnologia na matriz cogniti-

va e operativa é evidente, em primeiro lugar, dentro do próprio

espaço europeu e, posteriormente, nos contactos estabelecidos

com o resto do mundo.A própria definição da Europa incorpora

estes elementos. O termo “Europa” foi cunhado pelo historiador

grego clássico Heródoto como uma referência geográfica para

definir uma das três partes do mundo (as outros eram a Ásia e a

Líbia/África); o seu uso na Idade Média incorporou uma dimen-

são religiosa, a das terras da cristandade, em parte definida por

contraste com o império islâmico, então a maior ameaça exte-

rior. O século XV refez o conceito de Europa a partir dos novos

estados-nação.A outrora Europa feudal fechada abriu-se ao exte-

rior e projectou-se para a expansão ultramarina.

A descoberta da “fronteira marítima” modificou profundamente

o lugar da Europa no mundo, tanto em termos reais, como na

percepção que os europeus tinham de si próprios, colocando-

-a no centro de uma nova grelha civilizacional, com o resto do

mundo hierarquicamente num plano inferior.Trata-se, verdadei-

ramente, da construção de uma nova episteme que se pretende

planetária.

Em termos teóricos, esta nova fase é particularmente bem anali-

sada no plano económico com o célebre modelo da teoria mun-

do de Immanuel Wallerstein [3], que se baseia no conceito de

sistema global (ummundo articulado por trocas económicas em

regime de concorrência, num equilíbrio sempre ameaçado por

fricções), na dimensão da longa duração

braudeliana (

a

longue-du-

rée

da

École dos Annales)

[4] e de macro-escala. O sistema-mundo

refere-se, portanto, à divisão inter-regional e transnacional do

trabalho, que divide o mundo em países centrais, países semi-

-periféricos e países da periferia. Os países centrais acumulam

o

expertise

e o capital, enquanto as semiperiferias e as periferias,

com índices de competências inferiores, se baseiam no trabalho

intensivo e extracção de matérias-primas, o que reforça cons-

tantemente o domínio dos países do núcleo. Numa outra pers-

pectiva, mas focando o mesmo problema de uma hierarquia de

organização mundial, a teoria da dependência

2

analisa o mesmo

problema,mas centrando-se nos estados nação.Ambos estes mo-

delos se relacionam profundamente com o modelo difusionista

de George Basalla [5], em que a ciência e a tecnologia europeias

alastram progressivamente do(s) centro(s) para as periferias, al-

cançando nestas, num último estádio, uma eventual autonomia.

Hoje a tese de Bassala é largamente questionada por alternativas

muito estimulantes, como o conceito de apropriação, que intro-

duz uma dinâmica que vai muito além da noção de alastramento

progressivo [6,7], as contribuições conceptuais e metodológicas

dos

Subaltern Studies

3

, dos

Postcolonial Studies

4

e da

New Imperial

History

[8], com noções como

contact zone

,

go-betweens

e

interna-

tional junctions and sites

[9, 10, 11], e a noção de

creole technology

[12]

5

.

Com o comércio de longa distância, o colonialismo, o imperia-

lismo e o início da globalização, surgiu um novo significado para

o conceito de Europa que passa a espelhar-se fora do seu espaço

geográfico tradicional e a percepcionar-se como uma categoria

eminentemente civilizacional. No seu cerne estão a ciência, a

tecnologia e a medicina, usadas para observar, explicar, avaliar

e dominar a natureza. O mundo deixa de ser, definitivamente,

um lugar governado pela vontade de Deus, para se tornar uma

máquina hierarquizada e matematizada, organizada e governada

pelos homens. O argumento filosófico de Laplace ganha, no sé-

culo XIX, um novo significado, pleno de materialidade.

Assim, o contacto europeu com o “outro”, ou seja a delimitação

das fronteiras da Europa, que, durante séculos, fora construído

em torno do conceito de cristandade, passa a ser mediado pela

racionalidade tecnocientífica.

A Europa começou por se fechar sobre si própria, na Idade Mé-

dia, como defesa face ao inimigo islâmico; o movimento das

cruzadas, nos séculos XII e XIII, resultou da vontade de repor

a cidade santa de Jerusalém emmãos cristãs; a partir do século

XV, a expansão dos vários países europeus, primeiro Portugal

e Espanha e, mais tarde, França, Inglaterra e Holanda, integra-

va a clara dimensão missionária de trazer para a fé cristã todos

os que nela não se integravam. Esta agenda de cristianização

do “outro” teve, claro, gradações diferentes que resultaram,

essencialmente, do grau de estruturação formal das religiões

autóctones, sendo mais eficaz em populações com crenças for-

malmente mais rarefeitas, como os índios do Brasil ou as tribos

da África negra. Contudo, independentemente da sua eficácia,

a definição dos contornos identitários europeus fez-se, até ao

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