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dominação pelo deslumbramento, pelo espanto, pelo chamado
efeito de
technodazzling.
Claro que a noção de superioridade técnica por parte da Europa
não é exclusiva dos séculos XVIII e XX, mas é nesta altura que se
reconhece como o elemento axial do imperialismo europeu. Em-
bora por detrás dos missionários do século XVI e XVII estivessem
soldados com armas de fogo de eficácia indisputável, embora por
detrás do ímpeto religioso estivessem interesses económicos, o
que identificava a condição de “europeu” era a cultura cristã. O
que o século XVIII introduz é uma reorganização hierárquica dos
espaços definidores da identidade europeia face ao não europeu,
trazendo para o centro a superioridade técnica e científica, nesta
última incluindo-se, com forte ênfase, a medicina. Este tipo de
análise, que traz para a ribalta o papel da ciência, medicina e tec-
nologia como elementos centrais da definição e organização dos
impérios, é cristalizada na obra de Daniel Headrick [18].
Em finais do século XVIII e princípio do XIX, nas expedições que
preparavam as grandes intervenções técnicas de infra-estruturas
no terreno, as armas continuavam a ter um papel fundamental.
François leVaillant, um francês educado nas Índias Holandesas e
especialmente interessado em ornitologia, descreve, no seu con-
tacto comos célebres e temidos Cafres,o efeito demaravilhamen-
to causado pelos seus fuzis e pistolas. Segundo Heinrich Barth, na
obra
Travels and Discoveries in North and Central Africa
[19], Mungo
Park,o explorador escocês, era conhecido entre as tribos autócto-
nes do Niger, pela sua ferocidade e uso indiscriminado das armas,
como
táwakast
, ou seja animal feroz, denominação que os nativos
estendiam a todos os europeus. Henry Morton Stanley, o explo-
rador britânico que se encontrou, perto do lagoTanganhica, com
o famoso médico, missionário e explorador David Livingstone,
saudando-o coma célebre frase “Doctor Livingstone, I presume?”,
usava massivamente as suas armas contra as populações nativas.
Nas disputas entre as potências europeias e potências locais no
Norte de África e na Ásia, foi indubitavelmente a superioridade
do armamento que decidiu a vitória.Contudo, e apesar das armas
serem fundamentais para o estabelecimento de um domínio ini-
cial, a ocupação efectiva dos espaços imperiais, particularmente
relevante no contexto de forte concorrência económica consubs-
tanciada na agenda da Conferência de Berlim (1885), exigia uma
estratégia de longo termo, que passava pela domesticação efectiva
dos territórios, nomeadamente através do estabelecimento de
comunicações e de grupos de colonos, o que pressupunha uma
acção coordenada de conhecimento científico, domínio técnico e
intervenção médica.
O conhecimento dos terrenos, das suas fauna e flora, tornam-se
cruciais para o desenvolvimento da agricultura colonial, simul-
taneamente um elemento fundamental nos planos económico,
político e civilizacional.A exploração dos recursos naturais autóc-
tones,mas também a introdução, primeiro experimental, depois,
em muitos casos, definitiva, de plantas de outras regiões, torna
os territórios coloniais verdadeiros laboratórios de investigação.
Por outro lado, a construção de caminhos-de-ferro, de portos e
de telégrafos são as âncoras das estratégias imperiais europeias
na área da circulação de mercadorias, pessoas e informação: os
Franceses planeiam a linha transariana, Cecil Rhodes o caminho-
-de-ferro do Cairo ao Cabo, os Portugueses a ligação férrea entre
a costa de Angola e a de Moçambique, os Holandeses lançam o
projecto da primeira linha de comboio asiática, na ilha de Java. O
comboio ocupa as terras ultramarinas, actuando como elemento
fundamental de domínio no terreno, de estruturação das zonas
económicas, de afirmação do triunfo da Europa no mundo, im-
pondo noções de tempo e espaço completamente novas, indis-
pensáveis aos regimes económico e de trabalho capitalista (a exis-
tência de horários a cumprir, a normalização).
Finalmente, a medicina exercida nos trópicos pelos médicos na-
vais assume-se como indispensável aos impérios [20] na medida
em que lhe competia uma prática experimental e científica ca-
paz de tornar colonizável um território inóspito e recheado de
doenças devastadoras para os europeus e para colonos [21,22].A
quinina tem, neste contexto, um papel fundamental e o seu uso
por homens como Livingstone,Morton e Stanley, a que nos refe-
rimos acima, particularmente com as famosas “pílulas Livingsto-
ne” (quinina, calomel [cloreto de mercúrio], ruibarbo e resina de
jalapa) é um exemplo do uso desta substância como profilaxia (65
centigramas) e remédio para a malária (200 centigramas). Aliás,
Livingstone, quando na última expedição foi roubado e perdeu
as suas pílulas, escreveu no diário “Sinto-me como se me tivesse
sido dada a pena de morte” [23]. O uso da quinina foi claramen-
te fundamental para o domínio dos territórios, pelos exércitos e
pelos engenheiros e técnicos europeus.A taxa de mortes – de fe-
bres e de gastroenterites – baixou tremendamente com o uso da
quinina. Se usarmos como exemplo duas expedições do exército
inglês nomesmo território – o reino deAsante (Gana), a primeira
em 1824-27 e a segunda em 1873-74, ou seja, antes e depois do
uso da quinina, a taxa de mortalidade nas tropas baixou para um
sexto.
Sem uma higienização do território do ponto de vista da saúde
pública, a colonização teria sido impraticável [24].É neste contex-
to que a medicina tropical, como nova área de especialização no
seio damedicina generalista,se afirmará como crucial no controlo
efectivo das colónias pelaminimização dos riscos de contracção de
doenças desconhecidas na Europa e que vitimavamem larga escala
os colonizadores. Doenças como a cólera, malária, febre tifóide e
amarela, tinham de ser controladas para permitir a ocupação dos
territórios imperiais e o sucesso do seu controle foi crítico para
a hierarquização das potências imperais. Por exemplo o domínio
inglês no Sudão foi tanto o resultado da estratégia militar, como
da eficácia dos comboios e dos medicamentes dos engenheiros e
médicos britânicos.O facto dos exércitos franceses, por razões de
economia, usarem uma dosagem de cerca de 1/3 ou mesmo 1/4
da dos ingleses, foi fundamental para a vitória britânica, com ma
taxa de mortes muitíssimo mais baixa.A aliança ciência, tecnolo-
gia emedicina assume-se, pois, como eixo orientador do progres-
so das ciências médicas na metrópole e nas colónias, centrado no
intercâmbio de conhecimentos e práticas entre as duas realidades
estruturais.
O ideário da
missão civilizadora
é, contudo, um ideário de duas fa-
ces: a “domesticação” do mundo, a sua europeização, é, também,
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