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A n a i s d o I HM T
um processo de globalização da própria Europa, em que esta é
confrontada com as dificuldades de impôr/transferir/adaptar a
sua racionalidade e as suas práticas científicas e tecnológicas em
terrenos hostis, bem diferentes dos idealizados pelas retóricas
coloniais grandiloquentes das diversas políticas metropolitanas.
Joseph Conrad, em
Heart of Darkness
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, dá-nos a perfeita metáfora
desse afastamento, na imagem de Marlow, rio acima, em busca de
Kurz, internando-se num território que lhe é desconhecido, na
geografia e nos valores civilizacionais.A mesma imagem se pode
encontrar emDavidArnold, em
Colonizing the Body
[25], na análi-
se da relação entre a “medicina científica” e das práticas e crenças
indígenas.
Neste contexto, a questão do ensino é particularmente sensível,
tendo sido objecto de fortíssimos debates na Europa. Uma vez
mais, e, como acima já referimos, de acordo com a hierarquia va-
lorativa vigente das capacidades das civilizações não ocidentais em
apreenderem a matriz tecno-científica europeia, as opções face,
por exemplo ao
Raj
e à África Negra eram completamente dife-
rentes:no primeiro caso a formação de elites locais ao nível médio
e superior, em paralelo com uma formação generalizada de nível
básico,é fortemente encorajada;já no caso africano,quer ingleses,
quer franceses,quer portugueses,são claramente favoráveis a uma
educação elementar, eminentemente prática.
Os territórios coloniais funcionam, também, face às metrópoles,
como espaços de circulação de conhecimentos especializados, la-
boratórios de ensaio de novas práticas e mercados de trabalho,
tanto na ciência, como na tecnologia e na medicina.Muitas expe-
riências pioneiras são feitas em territórios ultramarinos, desde os
primeiros bombardeamentos aéreos, em 1911, perto deTripoli,
até trabalhos nas áreas da agricultura e da construção de infra-es-
truturas, ou de hospitais especializados emmedicina tropical.Para
acomodar a realidade colonial no âmbito tecnológico e médico,
surgem instituições de vocação específica, como o modelar
Impe-
rial College
ou as Escolas deMedicinaTropical de Liverpool [26] ou
de Londres ou os Institutos Pasteur ultramarinos [27].As divisões
profissionais no interior do exército como, por exemplo, para os
engenheiros e para os médicos ao serviço das colónias, sustentam
a especialização técnica e médica e a âncora para a afirmação ins-
titucional ao serviço dos Impérios. Particularmente interessante é
o caso da medicina associada às regiões tropicais que condicionou
a emergência desta área de especialização médica [28], estabele-
cida no seio de uma teia de alianças entre ensino, investigação e
a clínica no espaço europeu, alimentada pelo espaço laboratorial
humano colonizado [29], no âmbito das doenças mais endémicas.
O intercâmbio de conhecimento entre o espaço europeu e colo-
nial, supervisionado pelo europeu, torna-se crucial à afirmação de
uma área de conhecimento desconhecida nas metrópoles, como a
medicina tropical, evidenciando uma relação de interdependência
estratégica e um universo de hegemonia e superioridade muito
particulares.
Para muitos engenheiros, cientistas e médicos, trabalhar nas coló-
nias era parte de um treino de desenvolvimento de competências,
posteriormente capitalizadas em termos de carreira; no caso por-
tuguês, para o século XX, durante o Estado Novo, a opção colo-
nial surgiu também como única alternativa de trabalho possível
para cientistas, engenheiros e médicos, considerados, por razões
políticas, indesejáveis.
Por parte das populações que sofreram o impacto do imperialis-
mo europeu, e particularmente das suas dimensões científicas,
técnicas e médicas, a passividade nunca foi uma opção. Entre as
reacções extremas de recusa liminar da matriz tecno-científica
europeia e a sua total adopção, há uma larguíssima faixa de hi-
bridização, que se estende desde as tecnologias crioulas de David
Edgerton [30] até às “camadas” de resistência, participação e apro-
priação da medicina europeia de DavidArnold [31].
É precisamente nesta miscigenação, nesta apropriação criativa e
biunívoca, que as abordagens mais recentes sobre a ciência, tec-
nologia e medicina coloniais se têm, como já vimos, centrado,
destacando as múltiplas formas usadas para construir e fazer cir-
cular conhecimentos e práticas entre diferentes grupos e regiões.
Apesar de adoptarmos uma perspectiva que considera importante
a ideia de co-construção do conhecimento, em particular quando
se trata de ciência, tecnologia e medicina coloniais e imperiais,
acreditamos que alguns destes estudos têm desenhado uma ima-
gem demasiado idílica, quase romanceada, das relações entre vi-
sões de mundo distintas, ofuscando a tensão presente nas negocia-
ções e as diversas agências subjacentes às relações de europeus e
não-europeus, num jogo em que as respectivas elites definem as
suas próprias estratégias de aquisição e consolidação do poder.
É importante não perder de vista que omundo colonial estrutura-
-se de acordo com as lógicas de dominação e integração do mun-
do colonizado na estrutura ocidental, isto é, através da imposição
da episteme europeia. Embora esses vectores de dominação apre-
sentem diferenças e níveis distintos de sucesso, de acordo com
as características do colonizador e colonizado, estamos perante
relações de poder interactivas, mas claramente assimétricas. As
zonas de contacto, embora sejam espaços de circulação de saberes
e práticas, não são livres, uma vez que uma parte significativa do
processo de negociação se rege pela coerção e pelo conflito.
Ao estudarmos a adopção e apropriação de sistemas e dis-
positivos científicos e tecnológicos, neles se incluindo a
medicina, no mundo dos impérios europeus, desvendamos,
para além de uma imagem de cooperação, o que poderíamos
designar como o “lado negro” da interacção entre potências
europeias fora da Europa e entre europeus e não-europeus.
2. História da MedicinaTropical em Portugal
Na senda de um esboço da história da medicina tropical em Por-
tugal nas primeiras décadas do século XX, propomos fazer uma
análise do ponto de vista da emergência da medicina tropical,
como nova área do conhecimento científico nascida na transição
do século XIX para o século XX, no contexto do imperialismo
europeu. Nesse sentido, a análise da rede de interacção do co-
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Esta imagem tornou-se ainda mais poderosa pela sua massificação na
adaptação cinematográfica da obra de Conrad,
Apocalypse Now
, de Fran-
cis Ford Coppola.