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autónoma desde Escola de Medicina Tropical de Lisboa à Esco-

la de Saúde Pública e MedicinaTropical, no decurso de 70 anos

que intersectam a rota do IIIº Império Colonial Português, no

âmbito do intercâmbio científico além-fronteiras, não só no seio

da comunidade europeia como também das colónias, bem como

no domínio da apropriação dos modelos das escolas de medicina

tropical em Inglaterra e dos Institutos Pasteur e da Escola Militar

Colonial de Marselha ou das instituições internacionais como a

ONU e a OMS.

3. As origens da medicina tropical no Brasil

Uma história da medicina tropical no Brasil deve obrigatoriamen-

te retroceder a meados do século XIX e ao Estado da Bahia, onde

floresceu um grupo que ficaria conhecido como EscolaTropica-

lista Bahiana.

As colônias agrícolas no interior do Brasil e as comunidades es-

trangeiras de suas cidades litorâneas atraíam médicos, boticários

e cirurgiões para lidar com os problemas de saúde enfrentados

pelos europeus no seu processo de “aclimatação” aos trópicos,

zona imprecisa considerada, então, hostil a sua sobrevivência. A

arte de curar era praticada por uma constelação de tipos sociais e

raros médicos com formação universitária, adquirida na Europa

ou nas faculdades de medicina de Salvador e no Rio de Janeiro, as

únicas que o país teve até o século XX. Foram produto das refor-

mas implementadas após a fuga da Corte portuguesa para o Brasil,

durante as guerras napoleônicas.

Entre os médicos que emigraram para aquele império escravo-

crata figura Otto Edward HenryWucherer. Filho de comerciante

alemão e mãe holandesa, nasceu na cidade do Porto, emPortugal,

em 7 de julho de 1820 mas passou parte da infância na Bahia.

Depois de se graduar na Universidade deTübingen, em 1841, e

trabalhar no Hospital de São Bartolomeu, em Londres, clinicou

na zona açucareira do Recôncavo Baiano, estabelecendo-se por

fim em Salvador. Junto com o escocês John Ligertwood Paterson

e o português José Francisco da Silva Lima,Wucherer fundou a

Gazeta Médica da Bahia

(1866) e animou o grupo mais tarde deno-

minado EscolaTropicalista Baiana.Na fronteira entre o paradigma

miasmático/ambientalista e o microbiano, produziram investiga-

ções originais sobre as patologias daquela região da “zona tórrida”,

participando de uma rede informal de médicos geograficamente

isolados nos domínios coloniais europeus, com interesse crescen-

te pelo papel dos parasitos como produtores de doenças [49, 50,

51].

Em dezembro de 1865,Wucherer diagnosticou num escravo um

caso extremo de opilação ou‘cansaço’.A autoridade naquela en-

fermidade, até então interpretada à luz da climatologia, era José

Martins da Cruz Jobim, um dos fundadores daAcademia Impe-

rial de Medicina: o calor e a umidade, associados à má alimen-

tação e à fadiga, empobreciam o sangue e causavam a síndrome

que denominou hipoemia intertropical.Aquela anemia foi aco-

lhida pela geografia médica europeia graças a livro de José Fran-

cisco Xavier Sigaud, publicado em Paris, em 1844:

Du climat et

des maladies du Brésil ou statistique médicale de cet empire

[51].

Wucherer recorreu ao

Traité des entozoaires

(1860), de Davaine,

ao

Handbuch der historisch-geographischen Pathologie

(v.1, 1860; v.2,

1862-1864) de Hirsch e, sobretudo, a trabalho em queWilhelm

Griesinger relacionava a anemia a vermes da espécie

Ancylostoma

duodenale

, descritos, pela primeira vez, em 1843 porAngelo Du-

bini, na Itália. Em autópsia feita no Cairo, em 1852, Griesinger

encontroumilhares de ancilóstomos agarrados à mucosa do intes-

tino e supôs que a contínua extração de sangue explicava a anemia

lá diagnosticada como clorose do Egito.Quatorze anos depois, na

Bahia,Wucherer produzia confirmação dessa hipótese.

Griesinger pediu-lhe então (1866) que investigasse em seus pa-

cientes o

Distomum haematobium

descoberto porTheodor Bilharz,

no Egito também (1851).Na urina de pessoas que sofriamdomal

então conhecido como elefantíase dos árabes,Wucherer encon-

trou embriões de outro verme, desconhecido. Em 1872, emCal-

cutá,Timothy Lewis localizou-o no sangue e denominou-o

Filaria

sanguinis hominis

.A forma adulta apareceu três anos depois, num

abcesso linfático a Joseph Bancroft, na Austrália. Na China, em

1877-8, Patrick Manson desvendou boa parte do ciclo da filaria

(atual

Wuchereria bancrofti

), inclusive no hospedeiro intermediário,

o mosquito

Culex

.

Essa descoberta é um marco de um novo tipo de medicina que

lidava com complexos ciclos de vida de parasitos, mudança de

hospedeiros e complicadas metamorfoses em seus organismos e

no meio externo.

Grisinger e Bilharz tinham sido contratados para lecionar em es-

cola médica recém-fundada no Egito por Muhammad Ali, parte

de reformas modernizadoras concomitantes à expansão do setor

agroexportador que concentrava camponeses em condições mi-

seráveis de vida,assim facilmente enredáveis nos ciclos de vida dos

parasitos estudados por aqueles médicos. No Brasil, os da escola

tropicalista encontraram material de estudo adequado entre tra-

balhadores ligados a atividades agro-exportadoras, num império

escravocrata que iniciava também seu processo de modernização,

como fornecedor de gêneros agrícolas, reiterando, portanto, sua

dependência a países que tinham sido ou eram palco de revolu-

ções industriais.

Estamos falando de relações centro e periferia,mas como sistema

de mão dupla, em que médicos viajam para lugares distantes das

cidades universitárias europeias em que se graduam, para lá

fazer carreira, mal ou bem sucedida, ou acumular experiên-

cia e relações que lhes permitam galgar degraus na hierarquia

profissional das universidades ou capitais doVelho Mundo. Os

médicos emigrantes publicam artigos em periódicos nas duas

margens de suas vidas, sobre as experimentações que realizam

por esforço próprio ou sobre suas experiências clínicas, e é

preciso não esquecer que elas mobilizam vasto repertório de

informações de cunho ambiental, antropológico e sociológico.

Eles entretêm ativa correspondência pela qual circulam infor-

mações que vão alimentar a geografia médica - a um só tempo

disciplina acadêmica e tentáculo dos Estados que, através de

suas marinhas e outras organizações, empenham-se em coletar

informações sobre as patologias reinantes nos territórios dos

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