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CONSULTA DO VIAJANTE, OU ONDE A COMUNICAÇÃO PARA A SAÚDE SE

ENCONTRA COM A COMUNICAÇÃO “NA” SAÚDE

MAFALDA EIRÓ-GOMES *

JORGE ATOUGUIA **

* Escola Superior de Comunicação Social, Instituto Politécnico de Lisboa.

** Unidade de Ensino e Investigação de Clínica das Doenças Tropicais, Instituto de Higiene e Medicina

Tropical, Universidade Nova de Lisboa.

E-mail

:

JMA@ihmt.unl.pt.

Seek first to understand, then to be understood

Stephen Covey

No nosso quotidiano, e também, infelizmente,

nas nossas práticas científicas, parece que

continuamos reféns de todo um conjunto de

dicotomias que caracterizaram o pensamento e os

escritos de muitos dos que trabalharam nos séculos

que nos precederam. Atente-se na dicotomia

saúde/doença. Parece muito mais aceitável e

representativo da realidade pensarmos as noções de

saúde e doença como pontos de um mesmo

contínuo. Sabemos contudo que tal não é o caso.

Depois de deixarmos as consultas de saúde

infantil quantos de nós nos dirigimos ao

consultório de um médico porque nos sentimos

bem? Dir-se-ia que – e sem quaisquer pretensões

de exatidão científica – há, contudo, uma consulta

que parece não se deixar encaixar nesta

generalização: a consulta do viajante.

A “consulta do viajante” é a exceção que

confirma a regra. Em geral, quando nos dirigimos

a uma consulta desta natureza, estamos ótimos,

muitas vezes felizes, pensando nas férias que se

avizinham ou nos novos desafios profissionais num

país longínquo. A questão que deixamos aqui para

reflexão é se para os médicos esta também é uma

evidência. Quantas vezes pararam para pensar que

a pessoa que se encontra à vossa frente não é um

“doente”? Como será que o médico, no contexto de

uma consulta do viajante, na sua prática clinica, vê

o “não” doente? As dificuldades na interação

inerentes a uma assimetria intrínseca a qualquer

consulta, a do “face-a-face” entre um perito e um

não perito, são aqui, de algum modo, ainda mais

acentuadas, pelo desconhecimento que temos sobre

as expectativas, neste caso específico, desta prática

clínica.

Até que ponto é a linguagem que usamos

representativa das nossas disposições e até onde

uma mudança ao nível da linguagem permite uma

mudança ao nível das atitudes e dos

comportamentos? É fundamental, também aqui,

perceber que dicotomias como comunicar

versus

agir não fazem qualquer sentido. A comunicação é,

também ela, parte de uma teoria da ação e como tal

deve ser entendida. Dizer que alguém é um(a)

doente não é uma mera questão de designação mas

claramente o aceitar que a característica

fundamental daquela pessoa é – naquele momento

pelo menos – ser um doente. São situações deste

tipo que têm sido consideradas como fundamentais

para a alteração, mesmo que a longo prazo, das

atitudes e comportamentos tanto dos que se

dirigem a uma consulta do viajante, como dos que

a ela não se dirigem porque “não estão doentes”,

como de todos os interlocutores que, com

responsabilidades acrescidas pelo papel que

desempenhamna sociedade – operadores e agentes

turísticos, grandes empresas empregadoras em

países africanos ou do sudoeste asiático, por

exemplo –, se esquecem de a mencionar junto dos

seus públicos finais porque a sua sugestão poderá

ser por estes mal entendida.

É habitual, quando tentamos adaptar para

Portugal a noção de

health communication

,

centrarmo-nos exclusivamente na comunicação

para a saúde e não, em geral, na área designada

“comunicação

na

saúde”

ou,

também,

“comunicação em contextos de saúde/doença”

(

healthcare contexts

) (Eiró-Gomes, 2005).

Provocar uma mudança é sempre o grande objetivo

da comunicação para a saúde, seja para promover

um comportamento saudável ou para alterar um

comportamento não saudável. Quando falamos em

comunicação na saúde, várias outras rubricas

podem ser objeto de reflexão, embora o foco

principal seja normalmente a relação entre o

paciente (e a escolha da palavra não é aqui

inocente) e o prestador de saúde. Também aqui a

consulta do viajante desafia as dicotomias que

assumimos, tantas vezes, sem reflexão. Este é

claramente um contexto de saúde/doença, mas cujo