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Artigo Original
1. Introdução
No Brasil, como em diversos países do mundo, têm
sido observados consideráveis processos de mudança na
conformação do sistema de saúde, resultados de refor-
mas institucionais e sociais mais globais que ganharam
expressão setorial importante. No caso da Reforma Sa-
nitária Brasileira (RSB), é consenso entre diversos au-
tores que as lutas pela saúde foram subsidiárias das lutas
pela democracia no final dos anos 70 e década de 80, e
que o Sistema Único de Saúde (SUS), considerado um
dos maiores sistemas públicos do mundo, representou
uma inflexão radical na configuração e organização do
sistema [1, 2].
Entretanto, apesar de ter por substrato princípios e di-
retrizes abrangentes, incluindo a universalidade, igual-
dade e integralidade da atenção, a trajetória de quase 30
anos do SUS tem sido marcada por inúmeras contradi-
ções: parcelas importantes da população continuam de-
sassistidas e com dificuldades de acesso [3, 4] a estrutura
das unidades de saúde é precária em inúmeros casos [5],
há problemas de qualidade dos serviços [6] na oferta e
distribuição de medicamentos [7], na efetividade do con-
trole social [8], há inúmeras desigualdades regionais e de
grupos sociais [9] que atestam as idas e vindas e a grande
complexidade dos processos de mudança.
Nesse particular, cabe destacar certas dificuldades en-
frentadas pelo SUS no que diz respeito à operacionali-
zação dos princípios da igualdade e da equidade. Ainda
que se observe uma significativa produção de publicações
contemplando esses princípios doutrinários, parte dela
utiliza tais noções como sinônimos e uma proporção ain-
da menor empenha-se em explicitar definições, concei-
tos e referenciais teóricos relacionados com os mesmos.
Do ponto de vista semântico e etimológico, a palavra
equidade
está próxima da
igualdade
e ambas podem ser ad-
mitidas como sinônimos. São consideradas contraponto
para as desigualdades, sejam as sócio-económicas, sejam
as de saúde. Em texto muito divulgado pelo Escritório
Regional da OMS na Europa, ressalta-se que equidade
supõe superar diferenças evitáveis, desnecessárias e con-
sideradas injustas [10].
No Brasil, por exemplo, a equidade tem sido compreen-
dida, normativamente, como a obtenção igualitária, en-
tre os cidadãos, de ações e serviços no âmbito do SUS
[11]. Sugere uma perspetiva restrita de operacionaliza-
ção, centrada exclusivamente no acesso a bens e serviços
de saúde.
O enfrentamento das desigualdades é uma questão de ex-
trema complexidade e avanços na situação de saúde das
populações não necessariamente acompanhada de redu-
ção das iniquidades. Às vezes ocorre o contrário.A litera-
tura tem demonstrado que nem sempre, ou quase nunca,
as intervenções voltadas para a melhoria de indicadores
de saúde apresentam correspondência com a sua melho-
ria entre os grupos mais excluídos. O estudo de Gwatkin
(2002) [12] sobre políticas públicas é ilustrativo e apre-
senta resultados impressionantes: a revisão internacional
mostrou que não houve sequer um país em que os 20%
mais pobres da população tenha recebido ao menos 25%
do benefício económico dos gastos de governo.
Nesse ponto, cumpre assinalar a importância da inves-
tigação permanente dos resultados das intervenções em
saúde por referência ao alcance da equidade e da imple-
mentação de meios de difusão de um pensamento crítico
e comprometido com a inclusão social, que fortaleça a
adoção da perspetiva da equidade tanto na implementa-
ção das políticas públicas quanto no desenvolvimento da
pesquisa em saúde.
Em diversos países, as preocupações com os efeitos da
crise económica e do cenário político no estado de saúde
das populações e na organização dos sistemas de saúde
têm suscitado a emergência de Observatórios. Estes uti-
lizam informações dos sistemas de monitorização, avalia-
ção e vigilância, mas não se propõem a ser meras “
réplicas
ou substituições de quaisquer partes dos sistemas de informação
sanitária ou de repositórios crus ou inteligentes de estatísticas de
saúde
”.A missão dos observatórios está estritamente rela-
cionada com a sistematização do conhecimento produzi-
do e com a realização de análises críticas e elaboração de
proposições adequadas, identificando lacunas e promo-
vendo melhorias nos processos de informação sanitária, e
articulando os centros produtores de conhecimento com
os centros de decisão política em saúde [13].
Recentemente, o Instituto de Saúde Coletiva da Univer-
sidade Federal da Bahia (Brasil) liderou um grande pro-
jeto de pesquisa [14] cujo propósito incorporava, além
da produção de conhecimento científico sobre políticas
de saúde, o
compromisso
com a construção e fortalecimento de
sistemas universais de saúde,
[…]
baseados nos princípios da
solidariedade, equidade, universalidade e integralidade da aten-
ção à saúde
, utilizando como uma das estratégias para o
alcance desse objetivo a formulação e implementação de
um Observatório de Saúde.
Este artigo apresenta a conceção e descreve a experiên-
cia de construção do Observatório deAnálise Política em
Saúde (OAPS), ao mesmo tempo que busca discutir até
que ponto o OAPS se constitui em uma ferramenta capaz
de contribuir com a adoção da perspetiva da equidade na
formulação e implementação das políticas e da pesquisa
em saúde.
2. Contextualização
No início da década, um balanço da situação de saú-
de da população e do sistema de saúde brasileiro deu
origem a um número especial da série
Lancet: Health in
Brazil
(2011). Nessa oportunidade, foi possível identi-