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Introdução

Com mais de 360.000 casos reportados nas últimas duas

décadas na Europa [1], a Doença de Lyme é a doença causadas

por agentes transmitidos por vetores mais comum no Hemis-

fério Norte [2, 3].

Também designada por Borreliose de Lyme (BL), esta zoonose

é causada por bactérias do complexo

Borrelia burgdorferi

sensu

lato (s.l.), que são transmitidas através da mordedura de ixodí-

deos do género

Ixodes

, sendo a espécie

Ixodes ricinus

o principal

vetor na Europa [4].

O complexo

B. burgdorferi

s.l. conta atualmente com 20 espé-

cies distintas com ampla dispersão mundial [5, 6].

Durante a refeição de sangue que o vetor faz no hospedeiro, a

bactéria migra para as glândulas salivares e é injetada na cor-

rente sanguínea [7]. Dias a semanas depois da mordedura, sur-

ge no local um edema em forma de alvo, também designado

como Eritema Migrante (EM), que é acompanhado de fadi-

ga, febre, cefaleias, rigidez no pescoço, artralgias e mialgias,

muitas vezes compatíveis com um quadro gripal [8]. Sem um

diagnóstico e tratamento adequados, a doença pode evoluir e

tornar-se crónica, podendo afetar as articulações, a pele, o sis-

tema nervoso e o coração, entre outros órgãos e sistemas [8].

Em Portugal, o primeiro caso descrito de BL ocorreu em Évo-

ra e foi relatado por David de Morais e colaboradores em 1989

[9], seguido pelo primeiro isolamento de

B. lusitaniae

a partir

de carraças

I. ricinus

[10] e do isolamento da mesma espécie a

partir de uma biópsia de pele de um paciente com suspeita de

BL em Lisboa [11]. Apesar de ser de declaração obrigatória

desde 1999 em território nacional, a doença encontra-se sub-

-reportada e sub-diagnosticada [12, 13], com uma incidência

estimada de 0,04/100.000 habitantes [14], dados da década

anterior e que se têm mantido, dado o referido défice de no-

tificação.

Muitos vertebrados de pequeno e médio porte têm um

papel essencial na transmissão dos agentes da BL enquanto

hospedeiros reservatórios, em particular pequenos roedores,

ratazanas, esquilos, ouriços-cacheiros, lebres e aves

passeriformes [7], mas muito pouco se sabe sobre o papel dos

mamíferos de maior porte no ciclo epidemiológico destas

bactérias, para além de serem importantes fontes de alimento

para o vetor (carraça) [3, 15].

O javali (

Sus scrofa

, Linnaeus, 1758) é um mamífero omnívo-

ro de porte médio e com vasta distribuição geográfica pela

Europa, Norte de Africa e Ásia [16, 17]. Em Portugal, sendo

considerada uma espécie "Pouco Preocupante" ("Least Con-

cern", LC) de acordo com o Livro Vermelho de Vertebrados

de Portugal [18], a sua presença ocorre em todo o país, com

um número crescente de animais e de área de ocupação [19].

Este ungulado é uma espécie cinegética de caça maior com

importante valor económico em Portugal, em particular nas

regiões do interior como é o caso de Trás-os-Montes, quer

pela prática da caça quer pelo preço da sua carne, muito apre-

ciada pela sua qualidade [17]. Por ter uma enorme plasticida-

de e se adaptar facilmente a novos habitats em busca de mais

disponibilidade de alimento, entra muitas vezes em contacto

com animais domésticos e com os humanos, tornando-se uma

potencial fonte de infeções de caráter zoonótico [20].

O principal objetivo deste estudo foi avaliar a relevância do ja-

vali como hospedeiro reservatório no ciclo epidemiológico da

Borreliose de Lyme. Esta hipótese foi testada através da análise

da presença de DNA de

B. burgdorferi

s.l. no soro de javalis.

Os resultados deste estudo destinam-se a:

i)

contribuir para

a compreensão do papel epidemiológico do javali no ciclo de

infeção da LB e

ii)

estabelecer uma associação entre os resul-

tados e as preocupações de saúde pública, em particular para

grupos profissionais ligados às atividades cinegéticas.

Materiais e métodos

Foi realizada uma amostragem de conveniência em javalis aba-

tidos em montarias realizadas durante a época venatória de

2011/12 nos distritos de Bragança e Vila Real, onde foram

recolhidas 90 amostras de sangue e informação complementar

sobre cada animal amostrado (sexo, idade e distrito de prove-

niência) [21].

As amostras foram centrifugadas para extração de soro, poste-

riormente analisadas por

nested

-PCR, usando o gene da flage-

lina

(fla)

de

B. burgdorferi

s.l. como alvo molecular para os

pri-

mers

usados, devido à sua elevada especificidade face a outros

primers

comummemente utilizados [21]. Os produtos da PCR

foram sujeitos a eletroforese e sequenciados na StabVida (Lis-

boa, Portugal). As sequências resultantes foram submetidas

ao GenBank (número de acesso KJ810661) e com a ajuda do

BLASTN versão 2.2.29+ [22] foram comparadas com estirpes

de referência para

B.burgdorferi

s.l. [21] para identificação da(s)

genoespécie(s).

Resultados e discussão

A amostra populacional é representada por 61 fêmeas e 29

machos, sendo que 36 eram animais adultos, 30 subadultos e

24 juvenis.

A análise molecular demonstrou a presença de DNA borrelia-

no em três das amostras analisadas (3

+

/90; 3,3%). As amos-

tras positivas pertenciam a animais abatidos no distrito deVila

Real, em particular Montalegre (J26) e Alijó (J30 e J31). As

amostras J26 e J31 originaram sequências 100% compatíveis

com

B. afzelii

estirpe LO-3.9 (ex.: GenBank KF990318), en-

quanto os resultados de sequenciação de J30 foram inconclu-

sivos devido à diminuta qualidade da sequência obtida [21].

Esta foi a primeira vez que DNA de

B. burgdorferi

s.l. foi dete-

tado em soro de javali, um marco importante dada a suspeita

pré-existente de que o javali é um potencial hospedeiro reser-

vatório para estas espiroquetas [23-25].

A identificação de

B. afzelii

como a espécie circulante no san-

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