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A saúde e o Estado:

uma breve recapitulação histórica

Na era moderna, a saúde torna-se matéria de Estado, atra-

vés do estabelecimento de políticas públicas. É justamente

no grande movimento compreendido pelo processo histó-

rico dos séculos XV ao XIX, em que se estabelece a ordem

capitalista na Europa, é que a saúde passa a ser objeto da

intervenção estatal por meio de políticas públicas [1].

Esse processo histórico caracteriza-se pela transição de

uma lógica territorial – materializada no feudo e nas re-

lações sociais dele decorrentes – para uma lógica setorial

-assinalada na formação das categorias profissionais disso-

ciadas do território, materializada nas corporações pro-

fissionais e nas relações sociais originadas por elas –, que

impera a partir do século XIX. A política pública torna-

-se o mecanismo de intermediação entre o global (todo)

e o setorial (as categorias profissionais), transformando-se

em instrumento privilegiado do Estado para minimizar as

contradições e os conflitos sociais gerados pelo confronto

entre as duas lógicas [2].

Na Inglaterra, no século XIX, a chamada Nova Lei dos Po-

bres (1834) documenta uma das primeiras incursões do

Estado moderno no campo da saúde. A Lei dos Pobres era

um sistema de ajuda social aos pobres na Inglaterra e no

País de Gales que se desenvolveu a partir da Idade Média

tardia e das leis Tudor, antes de ser codificado no fim do

século XVI, tendo subsistido até ao surgimento do Estado

de bem-estar moderno, depois da Segunda Guerra Mun-

dial. Mediante essa edição, o Estado provia esses indivíduos

por considerá-los tendencialmente perigosos para a ordem

e higiene públicas. É também muito conhecido o trabalho

realizado por Bismarck, na Prússia entre 1883 e 1889, para

a construção de um sistema de segurança social voltado

para o proletariado e centrado nas corporações profissio-

nais (lógica setorial), que contemplava a assistência médica

individual.Tal movimento acabou por atingir outros países

europeus, como França, Itália, países nórdicos, mas é na

Inglaterra do início do século XX, no período entre 1905

e 1919, que, sob um alinhamento político progressista de

inspiração igualitária, institui-se um seguro nacional de

saúde aliado a um sistema fiscal fortemente progressivo.

No conjunto da Europa, a relação Estado/saúde terá sua

máxima expressão após a Segunda Guerra Mundial, com

a constituição do

Welfare State

, representando o desenvol-

vimento desse tipo particular de Estado que se denomina

Estado Social e ainda hoje é muito vigoroso naquele conti-

nente. Seu princípio fundamental é expresso pelo postula-

do de que, independentemente da renda, todos os cidadãos

têm direito a ser protegidos, com pagamento em dinheiro

ou serviços, contra situações de dependência longa, tais

como velhice ou invalidez, e curta, como doença, desem-

prego e maternidade. O

slogan

dos trabalhistas ingleses em

1945, “participação justa de todos”, resume o conceito do

universalismo da contribuição que é o fundamento do

Wel-

fare State

, como destaca Regonini (1998) [3].

Mendes (2004) [4] chama atenção para as diferenças entre es-

ses dois grandes modelos de organização de sistemas de saúde:

o modelo público universal, praticado em sociedades que se

conformaram comoprojetos democráticos sociais, fundado nos

princípios da solidariedade social, como Canadá, Reino Unido,

Itália e Suécia; e o modelo segmentado, calcado em valores indi-

vidualistas e de mercado e praticado em sociedades como a dos

Estados Unidos da América. Os sistemas segmentados são justi-

ficados, tal como se faz no Brasil, por um argumento de senso

comum, de que ao instituírem-se sistemas privados para quem

pode pagar por serviços de saúde, sobrariam mais recursos pú-

blicos para dar melhor atenção aos pobres. As evidências empí-

ricas mostram que tal argumentação pode ser sedutora, mas é

completamente equivocada, como bem destaca Mendes [4].Ao

criar-se um subsistema público especial para os pobres, dada a

pouca capacidade desses grupos de articular os seus interesses e

de vocalizá-los politicamente, esse subsistema tende a ser subfi-

nanciado e a ofertar serviços de menor qualidade. Nunca é de-

mais lembrar a célebre afirmação de Lord Beveridge, idealizador

do sistema de saúde britânico, sobre a inconveniência de sistemas

destinados apenas aos pobres: “políticas públicas exclusivas para

os pobres são políticas pobres”.

A saúde como direito humano

fundamental

Ao considerar-se a política de saúde como uma política so-

cial, uma implicação decorrente é a de que a saúde é um

dos direitos inerentes à condição de cidadania, uma vez que

a participação plena dos indivíduos na sociedade política

somente se realiza a partir de sua inserção como cidadãos

[5]. Mais que um direito social, há uma tendência cada vez

mais perceptível de se considerar o direito à saúde como um

direito humano [6].

Em 2000, o Comité dos Direitos Eco-

nómicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas aprovou o

Comentário-Geral #14, que reafirmou a saúde como direito

humano fundamental [7]. O texto enfatiza que

“o direito à

saúde não é para ser entendido como o direito de ser saudável”

, mas

interpretado como

“um direito inclusivo ampliado não somente

ao acesso aos cuidados médicos apropriados, mas também, aos de-

terminantes de saúde como o acesso a água potável e saneamento

adequado, segurança alimentar, nutrição e moradia, condições ocu-

pacionais e ambientais saudáveis e acesso à informação e educação

em saúde, incluindo saúde sexual e reprodutiva”

. O documento

mencionado destaca o papel importante da participação co-

munitária

“nas decisões relacionadas à saúde, nos níveis comuni-

tários, nacionais e internacionais”

. De forma textual ressalta a

não discriminação, a disponibilidade, a acessibilidade (física,

económica e de informações), a aceitabilidade (incluindo

as questões éticas e culturais apropriadas) e a qualidade dos

serviços (incluindo qualidade médica e científica) [8].

Temas em debate