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O processo de globalização, ao mesmo tempo que gera pos-
sibilidades de crescimento económico e avanço científico e
tecnológico dos atores internacionais, resulta cada vez mais
em contrastes económicos e sociais que se refletem na ex-
clusão de muitos países e pessoas que continuam imersos no
“subdesenvolvimento” [9].
A pobreza permanece como realidade para bilhões de pes-
soas no globo, limitando a criação de condições sociais ne-
cessárias para a saúde e gerando vastas iniquidades entre e
dentro dos países. Com isso, surgem assimetrias de poder na
ordem económica internacional, que limitam o desenvolvi-
mento económico e social dos países em desenvolvimento.
Tais desigualdades, muitas vezes transformadas em iniquida-
des por serem desnecessárias e evitáveis e ainda consideradas
injustas e indesejáveis, na concepção deWhitehead [10], for-
talecem o potencial do direito em atuar como instrumento
de mobilização em prol da dignidade humana.
A “cobertura universal de saúde”
Ao longo da última década têm crescido a discussão e as
pressões para a adoção de um conceito de “cobertura univer-
sal” proposto pela Fundação Rockfeller e pela Organização
Mundial de Saúde - OMS [11] no ano de 2005, quando o ter-
mo aparece num dos relatórios para a 58ª Assembleia Geral,
intitulado Seguro Social de Saúde: Financiamento Sustentá-
vel da Saúde, Cobertura Universal e Seguro Social de Saúde.
Nele, como bem destaca Noronha (2013), [12] tem início a
transformação semiótica do direito à saúde e do acesso uni-
versal e igualitário aos cuidados de saúde para o conceito de
“cobertura universal” indelevelmente associado à “proteção
do risco financeiro” e à busca de mecanismos alternativos de
financiamento setorial. Os Estados-Membros da OMS com-
prometeram-se, naquela ocasião, a desenvolver sistemas de
financiamento da saúde que permitam o acesso das pessoas
a serviços de saúde sem enormes sacrifícios financeiros para
pagá-los.Tal meta foi definida como cobertura universal, por
vezes também chamada de “cobertura universal de saúde”.
Cinco anos mais tarde, no relatório de 2010, a ordem das
expressões é invertida finalmente, e o tema central passa a
ser o do financiamento setorial como “caminho para a cober-
tura universal”. Já na abertura da 65ª Assembleia Mundial de
Saúde, a Diretora-Geral da OMS declara que “a cobertura
universal de saúde é o mais singular e poderoso conceito que
a saúde pública tem a oferecer”. Assim, a proposta de um
caminho para a cobertura universal de saúde, constante do
Relatório da OMS de 2010, acabou por despertar um grande
interesse em representantes do pensamento conservador da
saúde e nos defensores da presença do mercado na área da
saúde. Em dezembro de 2012, o tema foi levado à Assem-
bleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e in-
corporado como um dos itens da Resolução A/RES/67/81
- Saúde Global e Política Externa [12].
Qual o caminho a seguir?
Habermas (1997) [13] ensina que é essencial construir um
conceito de sistema público universal de saúde a partir de
fóruns de discussão que permitam sua génese democrática.
Tão essencial quanto essa construção, porém, é a realização
do direito assim gerado, como bem lembra Dallari (2014)
[14].
Diferentes países que dispõem de sistemas públicos uni-
versais de saúde, como é o caso do Canadá, da Espanha, do
Reino Unido, de Portugal e do Brasil, têm experimentado
mudanças, reformas e ajustes, ao longo de suas existências,
com maior ou menor grau de garantia efetiva da universa-
lidade, da integralidade e do financiamento público, sem
entretanto abrirem mão de continuarem a ser sistemas pú-
blicos de acesso universal [15].
A crise do capitalismo global que eclodiu em fins de 2008,
principalmente nos Estados Unidos da América (EUA), em
diversos países da Europa e no Japão, põe à mostra a fra-
queza do processo de globalização, de domínio financei-
ro, e deve levar, a longo prazo, ao descrédito das políticas
e do discurso liberal dominantes. Esse processo, que foi
imposto de cima para baixo, a partir dos países da tríade
EUA-Europa-Japão, representa a luta em nível mundial das
diversas frações de capital internacional hegemónicas, pro-
curando ampliar sua área de influência, de domínio e de sua
hegemonia económica e política a nível global [16].
Sónia Fleury, em 2011 [17], ao referir-se aos exemplos
do Chile, do Brasil e da Colômbia em matéria de orga-
nização de sistemas de proteção social, realçou que todos
eles promoveram um aumento efetivo de cobertura, po-
rém foram incapazes de eliminar desigualdades, ao mesmo
tempo em que permitiram a persistência de um convívio
entre os interesses públicos e privados, com tendência ao
favorecimento destes últimos. E lembra ainda, de maneira
enfática:
“a universalização não se encontra prisioneira de uma escolha trá-
gica entre direitos e restrições financeiras, já que a disputa pelos
direitos igualitários impõe uma nova pauta de reflexões sobre a
organização estatal em todas as suas dimensões, particularmente
em relação às formas de captação e distribuição dos recursos. As
condições financeiras não podem ser tomadas como um dado que se
impõe à lógica de ampliação e universalização dos direitos, porque
este a priori é apenas uma forma de escamotear o caráter essen-
cialmente político de constituição e distribuição do fundo público.
Ao contrário, o passo seguinte que tanto sanitaristas como juris-
tas deverão tomar como parte da trajetória de universalização da
saúde é, por suposto, a discussão das finanças públicas, não como
limite, mas como expansão da esfera pública igualitária. A subor-
dinação da universalização a esquemas de garantias mínimas em
modelos de proteção que se referem a seguros individuais permite a
compatibilização do financiamento público com o asseguramento e
provisão privados, mas não assegura a igualdade e a integralidade
pressupostas na garantia estatal do direito universal à saúde.”