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Artigo Original
Cooperação estruturante em saúde
e o papel das redes na CPLP
No início deste século, a mortalidade materna (causas ligadas à
gravidez, parto e puerpério) alcançava a cifra de 1700 mortes
maternas por 100mil nascimentos emAngola e ao redor de 1000
por 100 mil em Guiné Bissau e Moçambique [1].A expectativa
de vida ao nascer, que no Brasil e em Portugal alcançava cerca de
70 anos, não passava de 45 anos emAngola, Guiné Bissau e Mo-
çambique.Em2007, a mortalidade de crianças menores de cinco
anos por mil nascidos vivos, que era de apenas cinco por mil em
Portugal, chegava a 198 por mil em Guiné Bissau, 168 por mil
emMoçambique e 158 por mil emAngola [2].
Apesar de a Organização Mundial da Saúde (OMS) preconizar
o mínimo de um médico por mil habitantes, em 2004, oTimor
Leste, contava apenas com 0,1 médico por mil habitantes, en-
quanto Moçambique, mal alcançava a taxa de 0,03 médico para
cada mil habitantes [3].
Devido à situação de carência generalizada e de reconstrução
pós-conflito, vivida por quase todos esses países, seus sistemas de
saúde se constituem frágeis e pouco estruturados. Cobertura de
serviços deficiente em quantidade e qualidade, trabalhadores mal
remunerados e em número insuficiente e dificuldades na gover-
nança são apenas algumas das diversas debilidades que tornaram
crítica a situação de saúde nos países africanos de língua portu-
guesa (PALOP) e emTimor Leste.
Ademais, nenhum dos países dispõe dos recursos tecnológicos
necessários para atender às crescentes demandas em saúde de
suas populações e muitos dependem, de forma substancial, de
doações externas para operar seus sistemas de saúde, visto que o
gasto em saúde é diminuto, muitas vezes sequer cobrindo ações
da atenção primária.
No âmbito da cooperação internacional, por sua vez, a história
tem mostrado a proliferação, a desarticulação e a falta de coor-
denação de projetos e recursos oferecidos por um conjunto de
doadores – organizações multilaterais, agências nacionais de coo-
peração, organizações não governamentais e organizações filan-
trópicas de cunho religioso, dentre outras – que, normalmente,
pré-definem seus objetivos, programas e prioridades segundo
seus próprios interesses. Nesses casos, o uso dos recursos e as
ações de cooperação não são definidos pelos países que recebem
a cooperação, de acordo com suas necessidades, focando-se na
maioria das vezes em enfermidades de etiologia definida ou pro-
blemas bem específicos e delimitados de saúde, no formato que
é conhecido como‘cooperação vertical’ [4].
Os países beneficiários, emgrave crise económica e com alto grau
de dependência da cooperação externa, possuem, muitas vezes,
capacidade restrita para organizar e articular suas demandas.Além
disso, a articulação entre os Ministérios da Saúde e os Ministérios
das Relações Exteriores,bemcomo entre outros setores do poder
público é geralmente pequena ou quase nula.Todas essas condi-
ções acabam servindo de justificativa frequente para que muitos
dos doadores atuem nos países beneficiários com organizações
privadas, especialmente ONGs de origem estrangeira.
Em resumo, esse tipo de cooperação, que segue mais as linhas da
assim chamada ‘Assistência Técnica’
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e que é o modelo predo-
minante das relações Norte-Sul caracteriza-se pela superposição
de projetos, tanto no que diz respeito aos assuntos ou patologias
tratadas e aos territórios alvo quanto às populações envolvidas,
com a omissão ou ausência (‘
gap
’) de diversos temas prioritários
para a saúde da população desses países.A consequência principal
desse modelo é a fragmentação e a baixa efetividade dos escassos
recursos disponíveis no país.
Diante desse modelo, agravado ainda mais pela constante redu-
ção da ajuda externa devido à crise económica dos países de-
senvolvidos, o Governo do Brasil, inspirado nas estratégias da
CooperaçãoTécnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD)
[4] e na Declaração de Paris [5], posteriormente fortalecida pela
Agenda paraAção deAccra [6], cunhou e desenvolveu o modelo
de cooperação estruturante em saúde. Dessa forma, a coopera-
ção técnica entre países assume um caráter estratégico na política
externa brasileira, aomesmo tempo em que a saúde é reconheci-
da como tema predominante na agenda nacional de‘Cooperação
Sul-Sul’, revelando uma aproximação sem precedentes entre os
Ministérios das Relações Exteriores e os da Saúde [7].
É nesse contexto que o Brasil assume um papel decisivo na cons-
trução do Plano Estratégico de Cooperação em Saúde da Co-
munidade dos Países de Língua Portuguesa (PECS-CPLP) [8],
resultante de uma delicada costura da ‘diplomacia da saúde’[9]
brasileira.A partir de uma proposta da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde brasileiro, a Secreta-
ria Executiva da CPLP deu início ao processo de construção do
PECS, no qual logo se inseriu o Instituto de Higiene e Medicina
Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT), Portugal. A
partir daí, o Plano foi desenvolvido ao longo de reuniões inter-
caladas do Grupo de Saúde Interpaíses – Lisboa, junho de 2007;
Lisboa, junho de 2008; e Recife, março de 2009 – e dos Minis-
tros da Saúde dos países da CPLP – Praia, abril de 2008, e Rio
de Janeiro, setembro de 2008. O PECS consagrou-se como um
grande pacto celebrado pelos Ministros da Saúde dos então oito
países da Comunidade, registrado na Declaração do Estoril [10],
emmaio de 2009.
A cooperação estratégica em saúde coberta pelo PECS-CPLP
inclui sete eixos temáticos
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para a definição tanto de projetos
prioritários como de metas a serem atingidas. O objetivo fun-
damental do Plano é o reforço dos sistemas nacionais de saúde,
particularmente com a estratégia de fortalecimento ou desenvol-
vimento das ‘instituições estruturantes do sistema’ e de imple-
mentação da atenção primária à saúde.
Atravessando matricialmente os eixos estratégicos, o PECS de-
finiu a criação das‘redes estruturantes’ dos sistemas nacionais de
saúde como instrumento para a operacionalização das ações do
plano. Essas redes são constituídas por instituições nacionais ca-
pazes de implementar os principais compromissos que devem
assumir os Estados membros para assegurar sistemas de saúde
soberanos e eficazes.
Foram inicialmente considerados como estruturantes para os
sistemas nacionais de saúde os elementos vinculados à ciência