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Introdução
Entre os anos de 1960 e 1970, quando a Medicina Social
abriu o debate académico e social sobre os processos saúde-
-doença e as formas de organização das práticas sanitárias em
sua visão interdisciplinar, identificou na História e em sua
dimensão crítica, campo de saber fundamental. Nas palavras
de Cecilia Donnângelo, ao apresentar a primeira coletânea
no Brasil sobre os aspetos teóricos e históricos da Medici-
na Social, haveria que ter seus estudiosos e defensores, uma
atenção particular à dimensão histórica de sua constituição
e dilemas, “apreendido e reconstruído, também, através da
análise histórica”[1].
Tal empreendimento intelectual, produzido essencialmente
por sociólogos e médicos, se distanciou da História da Me-
dicina que vinha sendo difundida desde o século XIX, sob
balizas ranquianas e positivistas do conhecimento histórico.
Escrita quase sempre por médicos, “ordenavam fatos à luz
de esquemas evolutivos que combinavam os marcos crono-
lógicos da história política e administrativa brasileira com
marcha ascendente dos conhecimentos rumo a uma história
científica, eficaz, por obra, quase sempre, de vultos de im-
portância nacional e local” [2].
Dessa forma, a Medicina Social buscava, no âmbito da saú-
de e das práticas médicas, a compreensão mais ampla da
história da produção e difusão desses conhecimentos e prá-
ticas, não mais restringindo-se a uma investigação fechada
sobre uma ideia repousada na conceção de um “irretocável”
património científico e técnico, percebendo-os num con-
texto, onde um conjunto de fatores atuam e articulam-se
entre si, inseparáveis das condições económicas, sociais,
políticas e culturais.
Mais particularmente, entre os historiadores, o impacto tra-
zido pela tradição da École des Annales, entre os anos de
1970 e 1980, alargou todo um repertório de objetos, abor-
dagens, ferramentas conceituais e fontes, originando então
temas, metodologias, problemas e alternativas requalificadas
por metodologias específicas da ciência histórica e de sua ló-
gica. O território da geração da Medicina Social como Geor-
ge Rosen, Henry Sigerist e Entralgo sofreu incorporações
importantes para essa produção, agora, também influencia-
dos com maior profundidade pela Nova História:
“Questões pertinentes à raça e ao género, uma visão
mais refinada de classes e categorias sociais, a atenção
aos atores e particularismos locais passaram a infor-
mar os estudos sobre políticas, instituições e profis-
sões de saúde. A história da medicina deixou de ser
apenas a história dos médicos para se tornar também
as dos doentes, e a história das doenças experimen-
tou um verdadeiro
boom
historiográfico. O corpo, a
infância, as sensibilidades, o meio-ambiente e outros
objetos atenuaram as fronteiras entre a ciência da his-
tória e outras ciências humanas e naturais” [2].
Tal conceção de História da Medicina e da Saúde implicará
na ampliação de seus métodos e, sobretudo, de suas fontes,
trazendo como documento histórico, pistas, rastros possíveis
que levem a compreensões capazes de repercutir, exemplar-
mente, as práticas dos médicos, quanto de seus pacientes,
os seus espaços institucionais de ensino, pesquisa e trabalho,
mas com a mesma força as práticas e representações do ho-
mem comum; os espaços de associações profissionais, socie-
dades científicas e periódicos, sem perder de vista o universo
popular, suas formas de organização e sua leitura do mundo
que o cerca.
Partindo, então, dessa necessidade mais ampla possível de
documentos em seus vários tipos e origens, poderíamos citar
os documentos administrativos e legislativos, como os docu-
mentos de caráter didático-pedagógico; os documentos de
caráter académico e iconográfico, bem como os documentos
de viajantes, religiosos, naturalistas e cronistas; os documen-
tos de caráter geográfico e corográfico e os documentos de
divulgação médico-científica das publicações. Nossa preten-
são aqui será a de identificar uma passagem desse campo mais
formativo historiográfico, como também analítico, sobre um
determinado tipo inédito de fonte histórica, no caso a ce-
roplastia, observando como ela pode ajudar a compreender
a formação do campo médico em São Paulo nas primeiras
décadas do século XX.
A compreensão desses lineamentos, ao se estudar a insti-
tucionalização da medicina e saúde pública paulistas, trará
sempre novas perspetivas analíticas pelo encontro de fon-
tes ainda não estudadas, ou como assinalou Michel de Cer-
teau, por não deixar de ser a história também uma crítica
[3]. Entenda-se por crítica, sob tal perspetiva, a possibilidade
de investigar e atualizar os modos próprios de constituição
dos saberes no que tange a vários aspetos: seus caminhos e
desvios; os agentes e sua relação com a sociedade, lugares de
produção e instituições reguladoras; modelos epistemológi-
cos e técnicas; terrenos de atuação e tipos de prática.
A ceroplastia na Faculdade
de Medicina da Universidade
de São Paulo
Entre os anos 1920 e 1930, a medicina paulista passa por
importantes transformações. (4). Tem início um conjun-
to de transformações corporativas vinculadas à formação
dos médicos e suas especialidades, no qual o pensamen-
to clínico tornava-se preponderante no que diz respeito
às questões médicas e de saúde pública. Graças à influên-
cia da Fundação Rockfeller, um novo modelo de ensino foi
introduzido.
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Igualmente se observa nesse momento o colap-
so da medicina liberal, modelo caracterizado pelo trabalho
artesanal e desenvolvido em consultório privado. Na esteira
das mudanças promovidas na política de saúde após 1930,
cuja marca distintiva era a centralização, a figura do médico
Doenças, agentes patogénicos, atores, instituições e visões da medicina tropical