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A MEDICINA A BORDO
No início das Descobertas, a consciência da
importância do setor sanitário, como atividade
organizada ao serviço da saúde do homem no mar,
é praticamente nula (Doria, 2009; Frada, 1989).
Eram muito poucas as armadas que levavam
médicos ou outros agentes de saúde
,
nas suas
guarnições (de Castro, 2000). A sua importância
foi no entanto reconhecida, como o demonstra a
bula
Orthodoxae Fidei
, de 1486, na qual Inocêncio
VIII concede as indulgências próprias de cruzada a
quantos participem no empreendimento da
exploração de África, entre os quais menciona
“quaaesquer medicos; buticairos...”
(de Castro,
2000). A partir do início do século XVI, tais
presenças foram-se tornando cada vez mais
frequentes, não necessariamente como elementos
integrados nas tripulações mas, muitas das vezes,
na qualidade de passageiros. Foi o caso de Garcia
de Orta (1510-1568), que viajou para a Índia em
1534, na armada do seu protector, Martim Afonso
de Sousa (1490-1564), (Conde de Ficalho, 1983).
Perante uma medicina ausente ou ineficaz, a
doença e a morte a bordo provocaram perdas
pesadas, como na passagem do Cabo da Boa
Esperança e em Moçambique, onde “
os que
morreramno mar passaramde seiscentaspessoas
”
(de Albuquerque, 1986).
Com o tempo, a consciência das carências
sanitárias nos navios levou a medidas concretas,
pelo menos a partir de 1505, data da viagem de D.
Francisco de Almeida (1450-1510) para assumir o
posto de Vice-Rei da Índia. Àquela data
,
os
regimentos das armadas incluíam já um capítulo
consagrado à “cura dos doentes” e
,
na segunda
metade do séc. XVI
,
o apoio médico e
farmacológico a bordo tendia a processar-se duma
forma mais organizada (de Castro, 2000). Por carta
da chancelaria de D. João III (1502 [1521]-1557),
em 1530 é, pela primeira vez, nomeado
oficialmente um cirurgião para as armadas.
Foi só em meados do século XVIII que Baltasar
Chaves, médico de bordo, sistematizou várias
normas de medicina profilática naval, entre as
quais instruções sobre a lotação de água, normas
sobre mantimentos e dietas de boa qualidade,
presença de botica adequada, colchões emnúmero
suficiente, exame médico antes do embarque e
escalas em número razoável, de modo a permitir
renovação da água e mantimentos (Esparteiro,
1958; Frada, 1989). Estas e outras medidas
constituíram um grande avanço para a medicina
naval organizada, onde os portugueses foram
precursores.
Nalguns casos, houve a necessidade de
improvisar um navio para nele se reunirem e tratar
os doentes de um combate mais feroz, enquanto
não se alcançava porto seguro com melhores
recursos para o seu tratamento. Esta é a notícia
mais antiga que recolhemos sobre estes “navios-
hospital”, incluída no “Diário da Viagem de D.
Álvaro de Castro a Adem”:
“Quinta-feira 12 de
Abril [1548] …o vento era calmo borralho; e
atirou a fusta dos doentes um tiro. Pelo que fui a
ela e queria umhomempara ajudar o cirurgiãoa
curar feridas leves, pelo que lhe meti um
condestável de Belchior Botelho e lhe dei uma
pouca de pedra hume e de manteiga arras, panos
para ataduras e uma tenda para tolda. E neste
comenos nos chegou ali Cristóvão Carvalho que
tinha mandado a Suena buscar ovos e galinhase
me trouxe grã soma disto, de maneira que,
louvores a Deus, os feridos vão tão bemprovidos
que emGoa lhes fizerampouca vantagem”
(Doria,
2009).
No momento histórico em que ocorreu, quando
o objetivo predominante no setor da saúde era a luta
contra as pestilências, os desenvolvimentos para a
promoção da saúde a bordo representam um
progresso real, no sentido de se estabelecerem
medidas e serviços de atuação baseados em
conhecimentos novos, para benefício de um grupo
profissional específico – os marinheiros
(Gonçalves Ferreira, 1982). Este interesse pela
saúde dos marinheiros não estava isolado. Uma
preocupação abrangente com a saúde das classes
trabalhadoras estabeleceu, durante os séculos XVII
e XVIII, as fundações da saúde ocupacional e
permitiu a Bernardino Ramazzini (1633-1714)
publicar o seu tratado,
De Morbis Artificum
Diatriba,
em 1700 (Rosen, 1958)
Outro marco importante na progressiva melhoria
das condições de saúde dos nossos marinheiros e
soldados foi
,
indubitavelmente
,
a articulação dos
meios de que dispunham a bordo com os hospitais
de apoio que foram sendo implantados em terra (de
Castro, 2000; Doria, 2009). Luís de Pina refere
mais de 40 hospitais fundados pelos portugueses,
desde Cabo Verde até Macau, excluindo o Brasil
(Pina,1940).